"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Das cantigas de Nhô Liodoro

Quando partires de tua terra
de conta faças que nada é teu:
o que vale o seco torrão de terra
para quem dela se perdeu?

Quando sentires na carne a doença
não te esqueças de quem a mandou:
esqueça o verme e o vírus da doença,
pois não foste tu quem a inventou?

Quando desejares embalar teu filho
lembra-te que de ti ele não sai:
foste tu a renegar o filho
antes mesmo de ser pai.

E quando tua boca se encher de sangue
não queiras bancar uma de herói:
a vida inteira riste do sangue,
mas veja agora que essa vida dói!

sábado, 29 de setembro de 2012

Aforismo bêbado

Nem todo o dia se sangra. Os dias que sim, nos aproximam da vida.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Paisagem de espírito nº 2

"Cranly, grave desta vez, como ainda havia pouco, diminuiu o passo e disse:

- Sozinho! Completamente sozinho. Não receias nem sequer isso. E sabes o que tal palavra significa? Não apenas estar separado de todos os outros, mas não ter nem mesmo um amigo.

- Tomarei esse risco - disse Stephen.

- E não ter uma pessoa, sequer - disse Cranly, - que possa ser mais do que um amigo, mais mesmo do que o mais nobre e mais sincero amigo que um homem jamais tivesse.

Tais palavras pareceram haver ferido alguma corda profunda no âmago da sua própria natureza. Teria ele falado de si próprio, de si mesmo tal como era, ou como desejava ser? Imerso em silêncio, Stephen examinou o rosto dele, durante alguns momentos. Havia por sobre aquele rosto uma tristeza fria. Sim, tinha falado de si mesmo, da sua própria solidão que, no entanto, o apavorava.

- De quem estás tu falando, amigo? - perguntou-lhe por fim, Stephen.

Mas Cranly não respondeu."

JOYCE, J. Retrato do artista quando jovem. Trad. José Geraldo Vieira. São Paulo: Civilização Brasileira, s/d, pp. 256 - 257.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Paisagem de espírito nº1

"- Você devia ir a um colégio de rapazes, só pra ver. Experimenta só - falei. - Estão entupidos de cretinos, e você só faz estudar bastante para poder um dia comprar uma droga dum cadilaque, e você é obrigado a fingir que fica chateado se o time de futebol perder, e só faz falar de garotas e bebida e sexo o dia inteiro, e todo mundo forma uns grupinhos nojentos. Os caras do time de basquete formam um grupinho, os camaradas que jogam bridge formam um grupinho. Até os que são sócios da porcaria do Clube do Livro formam um grupinho. Se você tenta bater um papo inteligente...

"-Escuta aqui - ela disse. - Muitos rapazes encontram mais do que isso no colégio.

"- Concordo! Concordo, alguns deles encontram mesmo. Mas eu só encontro isso. Compreendeu? Esse é que é o caso. É exatamente o meu problema. Não encontro praticamente nada em nada. Estou mal de vida. Estou péssimo.

"- E está mesmo."

J. D. Salinger, O Apanhador no Campo de Centeio. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, p. 129.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Um bicho da terra tão pequeno

É como se faltasse algo. A doença, a proximidade da morte, o amor insatisfeito: tudo a mesma coisa: falta, ausência, abolição. No princípio, acreditava. Acreditei. Depois a dúvida, a covardia de pegar o futuro pela cauda. Então vieram tempos de infortúnio. De que adianta uma vida intelectual, se não se vive? De que adianta jogos de palavras, se não se comunica? A repetição, a repetição; a ocasião, não. Impossível reconciliar o outro. E em meio a dilacerações tão grandes para minha vaidade, imponentes do alto do meu orgulho, versos de Camões:

"No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?"

Existe alguma porta que me leve para a ação?

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Absconso ritual VI


Caravaggio


Estética do Desapego

Beleza, o que seria que me vem?
Nome qualquer que confio ao que agrada,
Se me agrada? Estética de ninguém?
Ou catarse grega experimentada
Como só Narciso concebe bem?
O ideal é que se possa ver
Com olhos longínquos o apresentado.
Bem está em amar e não querer,
Em vigiar para não ser tentado.
Pois a angústia pelo que não consegue
É fado que não há quem o sossegue,
É o desejo inverso a si, fracassado.
---- O que gosto e abdico com destreza
---- É o que se faz presente, se é Beleza.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Absconso ritual V

Francisco Goya


Metafísica Satânica

Quantas vezes é um sonho possível?
Quantos sonhos são possíveis? Um? Dois?
Quantas vezes ilude-se o visível?
Quantos sonhos ficam para depois?

Oh! respondam-me, poetas malditos!
Digam-me do que é feita a Ilusão!
Eu, louco, que comungo dos seus ritos,
Que escrevo incapaz, com sangue na mão,

Os salmos satânicos que aprendi,
A descrição do inferno em que caí
Desde o dia em que me vi a viver!

Quero que me digam essa verdade:
Se é o sonho ou a realidade
Responsável por eu sempre perder!