"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

domingo, 25 de outubro de 2009

Em Lisboa, o que havia? [2]

Tenho toda a alma voltada para um corpo que não é o meu. Tenho todo o pensamento voltado para um cérebro que também não é o meu. E tenho, por fim, todo o sentimento voltado para o coração que nunca tive. Caem, sempre, com uma excepção remota, no mesmo sector responsável pelo pensamento. Não quero nada novo, nada que não seja meu – se é que alguma vez tive alguma coisa – mas quero, sim, o conformismo comigo mesmo. Mas isso parece-me impossível.
Não sei como nem quando comecei a ser assim, estranho em mim mesmo. Pode ter sido desde que nasci, como pode ter sido ontem. Facto é que ao decorrer do tempo pouco importei-me para isso e voltei minha atenção para o mundo exterior fútil, fétido e dramático que me empurram pela goela abaixo desde que nasci. Agora, olhando para mim, percebo apenas que não me percebo, que sou um simples estrangeiro na planície árida de minha alma.
Acho que entrei, quando devia ter saído.

Em Lisboa, o que havia?

Estou aqui, sozinho como sempre serei, com a vista cansada de tanto ler e com a mente exaurida de tanto sonhar o que leio. Não tenho nada para fazer e, se tivesse, provavelmente não o faria. Tenho sono, mas não quero dormir. Quando durmo não quero acordar. Dormirei, realmente, daqui a algumas horas. Dormirei, não por vontade de dormir, de deitar, relaxar, descansar meus olhos e minha mente do labor físico e intelectual, antes, porém, dormirei por não poder permanecer acordado… o que é pena! Amanhã, ou melhor, hoje - já passamos da meia-noite - não quererei acordar, mas, movido pelo burburinho rotineiro dos afazeres alheios, e pelas necessidades que o corpo me impõe, levantarei, entediado, conformado com o único resultado possível: o de me levantar e cumprir o extenso ritual da vida, da vida que me mandaram viver, mesmo que para isso eu precise estar morto. É estranho, é confuso… Sou estranho, sou confuso nesse mundo de confusões em que vagueio, solitário, paradoxalmente oposto a tudo o que me diz respeito. Gostaria de escrever tudo quanto penso, nos momentos mais inesperados, mais bizarros em que concebo parágrafos e parágrafos de ideias esplêndidas! Talvez as pessoas não o achassem mas acho-o eu. Escreveria, assim, um breve dicionário da minha alma, se isso me fosse possível. Mas não o é! À primeira tentativa de transmitir ao papel esses meus pensamentos, essas minhas premissas, tudo se esvai, dispersa-se, até sobrar, apegada a meus olhos longínquos, a poeira do que poderia ter sido. E nunca passo disso. Fica-me uma indescritível sensação, de perda e de incapacidade.
É triste tudo: ficar sempre na vontade de fazer as coisas, sem nunca as fazer. Sim, porque essa minha incapacidade vai muito para além de meus pensamentos literários, de minhas filosofias ilógicas sobre as coisas… Essa minha incapacidade é o que me torna incapaz a vida, é o que me faz vegetar, apenas, sem acção para o que se passa ao meu redor. Apenas sonho tudo isto, misturando ilusão com realidade, religião com ateísmo, humildade com vaidade, força com fraqueza… sonho e vida.
Sonho a vida! Sempre a sonhei… E é mais triste constatar que não vivo o sonho.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

[Passou-me...]

Passou-me,
como se a tarde fosse branda,
mas não era,
o sono físico que o espírito tem.
Passou-me pela alma,
e em todo o resto o sinto apegado a mim mesmo.
Destroçou o espelho em que me via
e agora, se me vejo,
é refratado em mil eus que já não me lembro mais.

Ó, esmorecimento apegado do mundo!
Ó, desilusão perdida de tudo!

Aos diabos! deuses malditos de outras eras!
O meu Deus é vencido,
perdido no beijo que não lhe deram
e seu símbolo de glória é o seu próprio carrasco.
O meu Deus é um falhado,
um alado grito de misericórdia.

Nesta tarde, neste quarto,
Neste tédio,
com o sono que a alma tem,
quero esmorecer como meu mundo
e fracassar como o meu Deus.
Quero ser eu, como sou:
nada.

Não digo nada

Não digo nada nesse momento em que não se deve dizer nada.
Sinto que se o dissesse,
que se cortasse a sinfonia do silêncio,
o céu despencaria.
O equilíbrio das coisas é tão tênue,
tão delicado e cheio de segredos,
que um carinho meu te rasgaria.
A atmosfera é cinzenta e preenche a minha alma
aparentemente tão cheia de vazio.

As árvores se saúdam do outro lado da rua,
o vento as apresenta umas às outras.
Eu observo apático, disperso e longínquo,
enquanto travo guerras comigo mesmo
e me venço e me perco entre esforços vãos.
Me perco entre nós.

Entedio o tédio que há em mim,
Sofro por saber que sofro,
que penso,
que sinto,
que desejo,
que vivo!
Num domingo sem graça vejo a minha vida inteira:
Passado e Futuro, presente.
Num domingo sem graça me lembro, me esqueço,
me perco te encontrando...
(Você está empregnada em mim)
Você está em mim ou do meu lado,
em toda a parte ou em parte alguma.
O interlúdio que me toca entre o sonho e a vida,
e aos dois também.

Os móveis de um quarto que você nunca verá
respiram sua presença, sentem seu cheiro,
embalados no meu resfolegar inconsciente de derrotado,
de quem luta com toda a ignorância, covardia e parcimônia,
bravamente,
por um ideal vão, por uma batalha perdida.
Os móveis flutuam, rodam no quarto,
excitados com a música que não vem.

As paredes ontem tão brancas, simples e livres,
hoje tão maculadas, marcadas de língua,
de suor, sangue...
Superfície alva que traz escritos o devaneio,
o sonho,
o desejo... Superfície que transborda e molha o chão
com a saliva que é minha e o que me brota da pele e das veias.

Toda a arquitetura da casa sucumbe
à sua presença esquiva raiando num espaço negro.
Toda a ciência dos homens arqueja,
e seus cálculos se mostram inúteis.
Toda a religiosidade rasteja
aos pés de uma deusa viva que me tem.

E eu contemplo essa atmosfera carregada,
sem nada dizer,
para que o que eu sinto não rasgue o Infinito.

Carta*

*s/d

Caro Sr. Kappus,

Não te conheço e acredito que continuarei sem conhecer-te. Para mim és apenas mais um nome lido num papel qualquer. Minto, seria... Seria apenas mais um nome se não houvesse a semelhança que encontrei entre nossas personalidades. Soube, por sucinta leitura, dos teus temores e angústias, da efervescência passional que te preenche o espírito.
Perderia tempo ao me apresentar, ao dizer quem sou, o que sou. Tudo isto ficará explícito no desenrolar dessa forçada correspondência, pois o não ter com quem me desabafar obriga-me a isso. Não procure nexo em minhas palavras, pois não há nem o desejo de o ter. Não me creio capaz de realizar o que me proponho: o relato cirúrgico das minhas emoções, o diário único do meu estar-no-mundo. Começo, então, com a palavra base que sustenta a noite de mim mesmo: MEDO.
Há algum tempo principiei a sentir medo de dormir; para ser mais exato, medo de ir dormir. Quando pouso a cabeça no travesseiro e acomodo o corpo na superfície macia do colchão, fecho os olhos e me torturo. É horrível! Faço a retrospectiva do dia, o meu leque de oportunidades perdidas; faço a estimativa do dia seguinte e das oportunidades que hei de perder; finalmente, puxo o passado para dentro de mim. Peso cada palavra, cada gesto, cada olhar meu e dos outros, coisas de que ninguém mais se lembra a não ser eu, erros irreparáveis e insignificantes para a vida real; cruciais para a vida em mim. Enfim, tudo me angustia: o sorriso ou a falta dele, a palavra rude ou o elogio, o que eu disse ou o que deveria ter dito. E temo a verdade de passar por isto diariamente. Sendo assim, adio o quanto posso o repouso forçado: ando pelas ruas sozinho até à madrugada, volto para casa e invento coisas para me entreter, luto contra o disfarce do sono. Neste exato momento estou aqui, idas já as primeiras horas da manhã, experimentando a brisa precedente à aurora e passando a um qualquer desconhecido o desconforto que me vai na alma e nos dias.
Somente nas horas avançadas da noite, quando não há a horrível senda de deitar, é que me sinto à vontade comigo mesmo e com o que me rodeia. Aprendi a ser sozinho e a noite traz consigo a escuridão que mereço. Contudo, a situação tem estado difícil, pois sempre há um deus comigo, em minha mente. Uma deusa que me suga e me atrai, me consome o que tenho de melhor. Ah, Kappus, sou uma marionete invisível de cordas firmes e grossas que se denunciam em movimentos disparatados. Os meus pensamentos, a minha escrita, se tornaram estéreis, sucumbiram todos. Por que, Kappus, por que ser assim? Qual é a parte desigual que me coube da matéria morta dessa primavera gelada? Retira-me essa deusa ou entrega-me totalmente à sua vontade. Arranca-me a adulterada escolha. Quero fugir dela e de mim.
Como é frio o vento em minha alma! Como é negro e céu sem estrelas o infinito de horror que há em mim! Quantas vidas eu matei hoje, Kappus? Quantas!? Sinto frio e a falta de um abraço. Inúmeras vezes suicido. Sinto-me pai do filho que nunca terei; sinto-me pai do filho morto que nino no colo. Sinto-me pai de um cadáver, e satisfação nisso. Sinto-me vil e ridículo. Mais: sinto-me sozinho, desesperadamente só. Não há nenhum anjo sem asas que me dê a sua mão, não há quem estenda as mãos para meu próprio sofrimento e é angustiante ter de inventar esse alguém...
Kappus, com toda a dedicação que sua inexistência corpórea permite, meus cumprimentos e graça pela oportunidade prestada. Com toda a falta de sossego,
Eu.

Da Agricultura

O que colherei do nada que planto?
Eu, o lavrador vadio, sozinho, irresponsável...
Pessimista!
Eu que não tenho dom, que não tenho jeito,
que não tenho outros, que não tenho Eu.
Eu despersonalizado, condensado num corpo que já não aguenta
os ataques múltiplos dos cálculos imperfeitos.
Eu, sarcástico e satírico, agnóstico e apolítico,
causa e consequência de um século que não é o meu.
Eu que perco tempo pensando nas coisas mortas
quando deveria pensar no que existe, e só!

Mas eu, esse Eu, não se rende
ao chicote e ao cabresto
com que o bom lavrador colhe seus frutos.

No dia do teu aniversário

Abraço como quem não abraça,
como quem não entende o toque
de dois corpos que se pedem,
que se criam, evoluem, que se fazem.
Abraço, se abraço, como quem se perdeu ao longe,
por ilhas que o mar levou.
Abraço, quando abraço, com o desconforto consciente
de se saber incapaz de abraçar.
Incapaz de sentir.

Eu que creio, eu que sei, eu que aprendi,
por duras penas,
o que não se aprende, mas se percebe;
que reconheci após anos de esquecimento a minha face
no que há do outro.
Eu, lúcido, que tudo isso peso e reivindico
não poderia me dar ao luxo de não me sentir abraçando,
de não me sentir abraçado.

Preciso de alguém que me abrace,
de alguém que cole as linhas do seu corpo ao meu,
sem outras aspirações que não sejam a inocência e o dever humano.
Preciso de alguém que me abrace
e, sobretudo,
me ensine a abraçar.

Do Desconforto*

*trechos de um antigo diário

05 de Dezembro

Estou sozinho. Não fora isso tudo o que eu sempre quis? Então, tenho um quarto só meu para passar a noite acompanhado da solidão e acordar com ela. Talvez não seja tão bom quanto me fiz crer, mas também não é tão ruim quanto parece aos outros. O certo é que a partir dessa data, até que termine o caderno, relatarei a falta de relação cotidiana que observo, que vejo, nessas cabeças a meio palmo do chão e que, ainda assim, julgam ser o Infinito.
Enfim, relatarei o que tiver que relatar.

18 de Dezembro

Pretendia manter um registro regular, uma escrita constante sobre esses dias que passam aparentemente sem querer passar. No entanto, observa-se o lapso, a incompatibilidade... a preguiça... a falta do que dizer. Minha vida sempre se deu assim: uma sucessão de projetos abortados antes mesmo de começar, ou, se começados, falhados logo ao início. Sou incapaz de terminar algo, de dar continuidade a qualquer coisa. Sou inanimado ao que é exterior a mim.
Era do meu intuito também tratar dos meus sentimentos e pensamentos, da minha psicologia, da forma mais imparcial possível. Vejo agora que as coisas não ocorrerão assim, que esses meus fugidios escritos se desenvolverão livres de amarras estilísticas. Esse caderno será como uma retratação dos meus dias e do que em mim acontece. Não se trata de ser fiel a nada, sequer a mim: apenas aos meus sentimentos.
Tenho trabalhado, vagarosamente, minhas poesias avultadas em papeizinhos dobrados e perdidos em cantos. Passo-as a limpo, corrijo uma ou outra coisa sem mais preocupação que ficar livre de corrigir, me surpreendendo lendo coisas boas e más. Aqui não serei o hipócrita que tenho sido e dizer que não tenho escrito nada que preste. Porém não vôo longe e sei reconhecer o meu valor: não sou literatura de qualidade, não a quero ser. Mas não importa, ao menos tenho coligido minhas poesias e isso já mostra uma preocupação que nunca tive.
Abandonei [...]. Muito me faz pensar esse Monsieur Julien Sorel.
A vida não me tem sido tão opressiva como outrora. Difícil, sem esperanças, repleta de preocupações vãs para quem não sabe agir... Mas me apresenta novos desafios que, apesar de me sugarem, sei que terão um papel relevante em dias vindouros. O meu ser está a ser moldado. Veremos até aonde irá meu conforto e, mais importante, quando começará minha desgraça. Até lá, existo como posso.

26 de Dezembro

Bebi, como sempre tenho feito. Acho que vou me entregar a esse vício; não me domino mais. A vida só me é interessante quando bebo, do contrário tudo não passa de tédio e sofrimento.
Tenho me esforçado por ser mais humano, mais normalmente humano. Tem sido um processo penoso, árduo, mas pelo qual tenho que passar. Abdico de mim mesmo pelo outro, mas o mais importante ainda não consegui esquecer. Quero entender todos a toda hora, não me basta compreender e dizer algo artificial: quero sentir o que o outro sente.
Quem me dera ser outro sabendo que o sou! Mas isto não se pode e constato que sou sozinho, vil, inútil. Uma confluência de más coisas que se completam para me criar. Eu que sempre creio no que me dizem, que quero tornar a vida menos desconfortável a cada um, eu que... Eu que tanto penso não recebo nada, apenas a chacota alheia.
Quero alguém que me queira da maneira que quero que me queiram. Quero alguém assim, que não existe. Até lá luto para existir enquanto os que me estimam são vivos, pois assim não machuco ninguém.
Mas quero dormir.

28 de Dezembro

“Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a esse também.” Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na Baixa.

Me deparo com este trecho às duas da manhã. Minha tentativa de dormir, de me libertar dos pensamentos, se mostrou vã. Agora é outro o caminho trilhado: agora vivo meus sonhos. Mas sonho ou quero sonhar que sonho? Não sei, e a cada dia acho que sei menos. A cada dia desconheço tudo, me faço estranho a mim mesmo. Me perdi e não me encontro, nem a ninguém que me ajude a encontrar-me.
A vida sempre me foi um tédio, e o asco que esse tédio sempre me provocou apertava a minha garganta até eu quase sufocar. Acontece que hoje, apesar de sentir o mesmo asco, algo mudou. Antes não precisava sentir as pessoas, pelo contrário: lutava para não sentir. Algo inverteu isso em mim: luto, me esforço e me obrigo a abraçar alguém, a conversar, a sentir o outro com o mesmo grau de abstração que antes usava para não sentir. Na verdade, não gosto dos outros; necessito gostar. Me rebaixo por sentir.
Já não trago a certeza de nada e como sempre não assento castelos em areia: sinal da minha sanidade. Mas uma dúvida dilacera-me: sonho ou não sonho, quero ou não quero? Qual é o meu lado da balança? Sinceramente, não sei. Me acho tão disperso que creio conseguir ser tudo ao mesmo tempo, não sendo nada. Sou o dono de mil sonhos, mas nenhum é meu, nenhum o faço, nenhum o sonho. Apenas existem, por si só e contra a minha vontade. Estão aí para escancarar a crueza de mim mesmo, minha própria nudez desmistificada diante de um espelho sujo. Esses sonhos me fazem, me moldam, são meus pais, tios, filhos e netos; ou apenas o sonho de que sejam. Vivo por eles; sofro por eles.
Não me importam essas questões, queria me ver livre delas. Contudo, não posso. Acho que jogarei pela janela os corpos mutilados dos meus pais, tios, filhos e netos para que os abutres os comam. Beberei do sangue deles todos e comungarei de algo certo que me definirá. Faltarei ou não a todos esses compromissos?

1º de Janeiro

Com a virada do ano, eis que me vira a vida. Como previra, a desgraça me abateu. Entre a festividade da ocasião houve apenas a minha presença fúnebre e fria velando a morte dos meus sonhos. Sim, a morte, porque não os quero mais, despojei-me deles por não serem mais meus. Abdiquei da bebida que me viciava, abdiquei de mim mesmo. É uma questão de tempo eu me enganar e criar novas ilusões, de natureza diferente, esteja dito, que me possam forcejar à vida. Sair dela tem sido tão tentador, tão fácil e livre de segredos! E é esta naturalidade em ver a morte que me faz recear o fim próximo.
Me sinto um perfeito idiota, um palhaço, um falhado! Parece que riem de mim, zombam das minhas tentativas de ser gente; eu, lobo. É palpável esse desconforto, mas não maleável... Eu não pod[...]. Mendigo pela pena dos outros, por sua companhia, sua caridade. Suplico para que me façam sentir bem. Por quanto tempo sentirei o peso dessa minha vida morta e o desconforto desse meu existir para dentro?
A desgraça bateu à minha porta. Se abri, agora que entre e sente-se comigo. Há sempre um espaço vazio quando sempre se esteve sozinho.

05 de Janeiro

Impressiona-me como coisas fugazes parecem eternas e como coisas eternas (ou mais ou menos duradouras) parecem fugazes. Mas sei que tudo isso é psicologia para não enlouquecer.
Ontem mesmo dizia da desgraça que bateu em minha porta e que deixei entrar. Sentou-se. Sequer conversou sobre transcendentalismos e foi embora. Ainda sinto no ar, apegado, o seu cheiro forte de ressentimento e desespero, enquanto fito a cadeira fria que ela usou para descansar.
Durante esses dias de ausência quase me perdi e quase me procurei. Não, não vou encher de mais angústia estas páginas. É preciso mais dizer o quanto me recuperei, ainda que [...]. Há momentos em que me julgo inútil.
Quem discordará de mim? Nos meus sonhos o deus sou eu, e o meu Gênesis é um livro escrito a lápis que rabisco e apago o quanto quero. Ergo e destruo castelos, invento novas galáxias e não preciso explicar como se formaram. Faço o que quero, pois dentro da minha sensibilidade o mundo é eu. A visão do outro é só uma visão de mim, vida de espelhos mútuos.

12 de Janeiro

Estive em viagem. As grandes cidades sempre me entediam e angustiam. Dias terríveis. Não sei se cá é melhor ou não, nem muito me interessa saber; mesmo sentindo-me mal, sinto-me melhor aqui. A falta de paz vem de dentro, pouco de fora; lá vem de fora acumular-se com o que há dentro.
Estou folgado esses dias, e as preocupações, se não se fazem menos, são tênues preocupações. Restam as mais sérias, e por isso mesmo de mais difícil ou impossível resolução. Adio.

15 de Janeiro

Dizem-me ser a vida bela e nós os únicos responsáveis pela menor ou maior beleza dela. Mas como somos responsáveis se a vida se faz de outros, e esse conhecimento do alheio nos escapa? Como penetrar a esfera em que o outro vive e descobri-lo, julgá-lo, sabê-lo como ele se sabe “eu”? A vida são os outros que fazem, apenas nos moldamos como é possível moldar: ignorantes do que estamos a fazer.
É triste conhecer isso? Sim, mas menos triste que não conhecer e viver na fantasia de ser feliz. Não que isto fosse ruim, mas sempre há o risco de durante esse eterno carnaval a fantasia venha a se rasgar, e por se crer real e necessário o que há de fantástico, o indivíduo fica nu perante aos demais e vem o ridículo. Eu, conhecendo e abdicando da fantasia, me ponho nu aos olhos de todos sem que ninguém o veja. Me faço tão insignificante, tão perdido e embaçado que me esquecem e ignoram. E é nessa condição de ostracismos que assisto à festa dos felizes, com um sorriso sem graça de quem se embaraça com uma pergunta infantil.
Nada tenho com a vida, nem com os outros. Quero apenas tangenciar tudo isso. Na trigonometria da vida não passo de uma incógnita que não devia estar ali.

19 de Janeiro

“A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.” C.D.A.

Se muito não me engano, é esta a ordem desses versos. A verdade deles invade e converte tudo o que há de vazio e contrário. O que é a poesia senão o que não se pode falar, o que não se diz? Por melhor que o poeta seja, nunca atingirá, em escrita, o nível do que realmente pensa. O que pensa perde propriedade ao converter-se em matéria. Não vale a pena perdê-lo, não vale a pena comunicá-lo – o ridículo de não se dizer. Mais vale sonhar a escrita que a escrever, transformar o pensamento em outro pensamento, em sonho, para que nada se perca. A poesia é incomunicável. Somos psicologicamente tortos. Amar? Mais vale sonhar amar, sonhar a poesia da vida, que querer vivê-la, torto no seu canto.
Estas idéias que me vêm ao lembrar de qualquer trecho de obra lida, servem apenas para iludir e passar o tempo. O que me importa concordar ou não? Se me fez me esquecer de mim, já então é alto e magnífico. São matérias como essas que consolam os iletrados da vida, os que, se olham pela janela, demoram demais e se perdem no esquecimento de si. É melhor não fazer nada, apenas entreter-se para que a vida passe ao de leve, sem tocar o suficiente que a faça sentir.
Inexistir.

05 de Fevereiro

Mais uma vez. Se eu não me agüento, por que tento? É chegada a hora da escolha, a hora que eu temia e sabia que iria chegar. Preciso escolher entre o que sou e o que finjo ser. Estou fadado à solidão. Se assim deve ser, não será o álcool ou outra coisa qualquer que me trará paz: tudo me traz sofrimento. Me entregarei à solidão. Se tenho que ser o “estranho”, serei, sim, estranho e estrangeiro de um lugar do qual nunca deveria ter saído, nem chegado, nem nada!
Não sei lutar, não sei fazer, não consigo agir! Sou regado a insucessos, fracassos e tudo o que não tentei. A ineficácia me persegue. Me sinto entregue a mim e a um deus em que não acredito, aprendendo a negar a minha própria existência e a cad[...].
Chega! Esse tempo acabou. Vou me acostumar ao que sou e à vida que tenho. Continuarei sofrendo, mas não fugirei de mim mesmo. Eu, que só tenho a solidão, como posso me deixar sozinho? Uma grande vontade de largar tudo me abate, mas devo largar apenas meu fingimento, minha vaidade, minha gloriosa vontade de infinitude! Preservarei a mim, meu corpo vivo, enquanto a alma soergue o esforço de sofrer: problema de quem a faz sofrer, pois minha alma já não é minha.
Estou sozinho e sem defesas. Não sei como, mas preciso me adaptar.

13 de Fevereiro

Retomo hoje minha escrita, após fitar o cinza perdido da desesperança. Chegado aqui e há já alguns dias, odeio tudo isso. Me é difícil aceitar os parâmetros de uma cidade grande, de uma metrópole. Não me sinto satisfeito com nada, e, nesses dias tedientos, só o Velho Lopes me diverte. As suas manias e sua maneira de estar sempre quieto, calado, fumando, pesam sobre mim como a consciência minha de dias vindouros. Serei eu também assim, no futuro? Se me ponho a perguntar, vejo que o sou no presente... No lugar do fumo, a minha mania é a auto-flagelação, o meu vício é a abdicação do que creio, minha velhice é a minha incapacidade de ação.
As coisas se põem como sempre: mal. Eu as encaro como sempre: sem encarar. Fugindo, fugindo, até aonde o precipício permitir. Hei de cair? Não sei, nem os deuses sabem que são deuses, nem os homens sabem que o são. Que a Solidão se torne a melhor companheira, é o que preciso. Mas, para isso, terei que deixar o Velho Lopes. O que importa? Se eu não me importo a mim, por que diabos os outros me importariam? Importa-me estar só, ficar sozinho, nesse momento em que não sei o que fazer. A náusea por tudo o que é vivo é o legado que me fica de dias que não entendo. Não sei como, quando, nem por que fazer. E vivo, sem saber, e, porventura, sem fazer.
[...]
Não sei quanto vale a realidade. Para ser sincero, sempre julguei ser a "realidade sonhada" a única relidade que vale a pena: podemos moldá-la, alterá-la, fazer o que quiser. A "realidade real", não. Ela existe, independe de nós, confronta-nos e, ou se é forte e vence-a, ou se é fraco e sucumbe-se a ela. Eu pertenço ao segundo grupo. Prevalece em mim a vontade de não fazer nada, de não ser nada, de não pensar, ver, acreditar, confiar, em nada! Sou assim desde quando? Não sei, desde que me lembro de mim.
Quantas flores vemos no caminho para depois, quando a vamos colher, estarem pisadas, murchas, venenosas? Assim é a vida real, nos ilude a todo momento. Enquanto sonhamos, se sonhamos, não temos esses problemas. O que é o sonho? O cidadão normal responderá: "Algo que queremos muito que se torne realidade." Ora, se o sonho é uma realidade não realizada não é sonho; logo, não passa de uma vontade insatisfeita, um desejo reprimido. Sonho é uma situação imaginária, aonde quem imagina já desiste antes de querer ver como real. O sonho, para ser sonho, tem que ser impossível. Como exemplo, posso sonhar ser Cristo ou outra figura qualquer, pois que nunca a serei. Mas, no entanto, não posso sonhar com um bom emprego, se partir da premissa de que lutarei para isso. Só posso sonhar o que sei de impossível realização. A realidade não me pertence: é de todos e, por isso mesmo, de ninguém. Os meus sonhos, esses sim, são meus, impossíveis, quiméricos e, por serem uma realidade apenas em mim, insofismáveis. É como embalar uma criança morta ao colo: fria, estática, mas linda como outra qualquer criança, e sem a obrigação da vida.
Não sei se é em verdade isso aquilo que penso, ou apenas uma maneira de me desculpar dos meus fracassos e obter remédio na introspecção. Eu mesmo não me sei. Mas que quem leia não se prenda em julgar, que cada um crie uma concepção do real que lhe aprouver. Eu me refugio na minha, pois me apraz a desistência, a desilusão e a saudade do que nunca será.

14 de Fevereiro

O Velho Lopes tem me ensinado: não existe presente. A vida humana se perfaz apenas em passado e futuro. Presente é apenas um nome equivocado que damos a um tempo que não sabemos, não entendemos, não vivemos. Estranho? Talvez o Velho Lopes o seja, para mim não. Não vivemos o presente: vivemos uma nostalgia do passado e uma perspectiva do futuro. Os nossos atos são o resultado do que fomos e os alicerces do que seremos, nunca o que somos. Temos em vista sempre um tempo outro.
Ah, como tudo é imperfeito! Como não compreendemos as coisas pelas quais passamos, as vivências que somos obrigados a ter...! Ah, ninguém iliba o sofrimento de ter nascido. Para alguns a vida é bela, maravilhosa, divertida!... O que levam do que são é que não sei. Se nesse momento sou um determinista, o sou com gosto... não me importa as opiniões de Sartre. Se eu fosse totalmente livre, meus atos não teriam conseqüências. Mas não, estou preso às conseqüências de meus atos e, se me prendo a elas antes de agir, desisto da ação antes de me prender. Gosto de me subtrair, pois que assim esperam menos de mim e eu não espero nada dos outros. Tudo o mais não é nada.
Há o tédio, a incapacidade, a incompreensão, o desejo insatisfeito, o desconforto, o desespero, a vontade de findar que não passa de mais um sofrimento por não ser o suicídio o que quero. O que quero é inexistir, apagar cada passo meu na areia branca que não pisei, mas sonhei pisar; cada beijo na boca que me fiz crer minha, mas que nunca foi; cada palavra solta ao vento sem que ninguém a escutasse. Quero me apagar não só da memória das pessoas, mas do mundo. Não quero um único átomo meu, uma única atividade neuronial que me demonstre. Quero sumir.
Não posso e essa vontade de não-ser, esse sonho de não sonhar, não passa de mais um sofrimento, de mais uma suspensão do eu, de mais uma subtração das capacidades do ego! O meu desejo é meu inimigo, eu sou meu inimigo e, assim, não tenho contra quem lutar. O meu humanismo é falsificado, minha literatura é falsificada, meu pensar é falsificado. A única coisa que é verdadeira em toda minha substância é o "desviver". Sem isso, tudo o mais é falso. Não conheço nada que não tenha caído ou se mostrado falso à minha passagem, nada dura, nada se eterniza; tudo se dissolve em mim. Eu acumulo o pó dos dias no casaco que não uso, molho a face com as lágrimas que não choro, grito alto com a boca que não abro; sempre em sonho. E tudo isso é muito mais real se o pó o mundo visse, as lágrimas sentisse e o grito arrebentasse seus tímpanos, é mais real para mim porque acontece em mim, livre de outros; não se falsifica, sou eu e meus sentimentos.
Nem a morte me serve. Estou fadado a esse carrasco chamado Vida, até que o mar das coisas incertas me afogue totalmente nele e eu viva como quem vegeta, ou morra, como quem vive.

domingo, 30 de agosto de 2009

"Bem-aventurados os bobos, porque sabem sem que ninguém desconfie."

Nascido num tempo que não compreendo nem me compreende, sinto a necessidade de retirar de mim tudo o que sufoca e gritar, com o grito que não grito, as potestades dos meus dias. Não procuro amigos, nem divertimentos; não quero conforto, nem reconciliações comigo mesmo. Apenas dar o testemunho descompromissado da minha própria vida e me entreter com isto, para que assim me diminua a febre de sentir.
"Bem-aventurados os bobos", pois são estes os únicos que levo a sério.