"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Carta*

*s/d

Caro Sr. Kappus,

Não te conheço e acredito que continuarei sem conhecer-te. Para mim és apenas mais um nome lido num papel qualquer. Minto, seria... Seria apenas mais um nome se não houvesse a semelhança que encontrei entre nossas personalidades. Soube, por sucinta leitura, dos teus temores e angústias, da efervescência passional que te preenche o espírito.
Perderia tempo ao me apresentar, ao dizer quem sou, o que sou. Tudo isto ficará explícito no desenrolar dessa forçada correspondência, pois o não ter com quem me desabafar obriga-me a isso. Não procure nexo em minhas palavras, pois não há nem o desejo de o ter. Não me creio capaz de realizar o que me proponho: o relato cirúrgico das minhas emoções, o diário único do meu estar-no-mundo. Começo, então, com a palavra base que sustenta a noite de mim mesmo: MEDO.
Há algum tempo principiei a sentir medo de dormir; para ser mais exato, medo de ir dormir. Quando pouso a cabeça no travesseiro e acomodo o corpo na superfície macia do colchão, fecho os olhos e me torturo. É horrível! Faço a retrospectiva do dia, o meu leque de oportunidades perdidas; faço a estimativa do dia seguinte e das oportunidades que hei de perder; finalmente, puxo o passado para dentro de mim. Peso cada palavra, cada gesto, cada olhar meu e dos outros, coisas de que ninguém mais se lembra a não ser eu, erros irreparáveis e insignificantes para a vida real; cruciais para a vida em mim. Enfim, tudo me angustia: o sorriso ou a falta dele, a palavra rude ou o elogio, o que eu disse ou o que deveria ter dito. E temo a verdade de passar por isto diariamente. Sendo assim, adio o quanto posso o repouso forçado: ando pelas ruas sozinho até à madrugada, volto para casa e invento coisas para me entreter, luto contra o disfarce do sono. Neste exato momento estou aqui, idas já as primeiras horas da manhã, experimentando a brisa precedente à aurora e passando a um qualquer desconhecido o desconforto que me vai na alma e nos dias.
Somente nas horas avançadas da noite, quando não há a horrível senda de deitar, é que me sinto à vontade comigo mesmo e com o que me rodeia. Aprendi a ser sozinho e a noite traz consigo a escuridão que mereço. Contudo, a situação tem estado difícil, pois sempre há um deus comigo, em minha mente. Uma deusa que me suga e me atrai, me consome o que tenho de melhor. Ah, Kappus, sou uma marionete invisível de cordas firmes e grossas que se denunciam em movimentos disparatados. Os meus pensamentos, a minha escrita, se tornaram estéreis, sucumbiram todos. Por que, Kappus, por que ser assim? Qual é a parte desigual que me coube da matéria morta dessa primavera gelada? Retira-me essa deusa ou entrega-me totalmente à sua vontade. Arranca-me a adulterada escolha. Quero fugir dela e de mim.
Como é frio o vento em minha alma! Como é negro e céu sem estrelas o infinito de horror que há em mim! Quantas vidas eu matei hoje, Kappus? Quantas!? Sinto frio e a falta de um abraço. Inúmeras vezes suicido. Sinto-me pai do filho que nunca terei; sinto-me pai do filho morto que nino no colo. Sinto-me pai de um cadáver, e satisfação nisso. Sinto-me vil e ridículo. Mais: sinto-me sozinho, desesperadamente só. Não há nenhum anjo sem asas que me dê a sua mão, não há quem estenda as mãos para meu próprio sofrimento e é angustiante ter de inventar esse alguém...
Kappus, com toda a dedicação que sua inexistência corpórea permite, meus cumprimentos e graça pela oportunidade prestada. Com toda a falta de sossego,
Eu.

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