"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

terça-feira, 29 de março de 2011

História em V atos - Ato I

No início, pensei que fosse possível. Houve dia em que julguei ser alguém; houve vez em que quis ser alguém. Lembro-me ainda dos primeiros anos na escola, a certeza de que para mim se reservava um rumo certo, o tempo em que as tias velhas, a família nos serões na varanda, dirigiam benevolentes para mim os olhares e me faziam acreditar em qualquer coisa, em qualquer coisa que poderia ser. Sim, para mim houve um tempo, um tempo futuro que sorvia deitado ao sol, estirado no chão quente de ardósia do terreiro, com os olhos fechados para que o suor para eles não escorresse da testa, e eu me via como o homem que hoje desconheço, completamente apto para o convívio entre os seus.
Todos na vida temos ilusões, o que seria de nós sem elas? E o que a face oculta da memória insiste em esconder no instante tenebroso do presente, não é mais que essa torpes divagaçõezinhas, esses planos do passado que se eclipsaram pela maneira inadaptada que hoje temos, ou ao menos a tenho eu, de lidar com o seu próprio tempo, presente e imediato. Mais que as reprimendas, que as admoestações do passado, que as lutas em que fui terrivelmente esmagado, esses sonhos irrealizados e irrealizáveis me formam, me preenchem o espírito com a angústia de não-ser. Hoje me reconheço como o aborto monstruoso de tudo aquilo que não fui, de tudo aquilo que não sou, e o espelho que toco e me desconhece, grita-me essa verdade pelos olhos perdidos de um rosto que não era para ser o meu.

domingo, 27 de março de 2011

Absconso ritual IV


Fotografia: Natan Henrique de Faria e Sales

Onde andará aquele garoto, aquele mesmo de olhos negros, meio lerdo, que me acompanhava nas discriminações da escola? Onde, onde andará? Onde estará Alexander? Até onde sei, pode estar numa cidade qualquer com os pais ou morando sozinho em Bucarest. Onde quer que esteja, é quase certo que não se lembra mais de mim.

Alexander era filho único. Emigrou da Romênia com os pais. Nunca lhe perguntei nada sobre Chausesco. Mas também, de que valia ter perguntado: com toda certeza ele não foi morto nem maltratado por ele! E, no fim, é sempre isso que importa, é sempre isso que procuramos conseguir: não ser morto. O resto (se gosta ou se não gosta, se é feliz ou não...), o resto é acessório, o resto é enfeite, o resto é o que não é importante.
Estive uma vez na casa de Alexander. Não ficamos em seu quarto jogando vídeo-game. Alexander não tinha quarto. Dormia na sala. Eu não tinha casa, dividia um apartamento com um monte de gente que entrava e saía: um dia dormia com alguém ocupando a cama ao lado da minha, no outro já não estava mais e era outra pessoa que chegava. Mais tarde também pude dormir na sala, mas isso foi mais tarde (depois de eu conseguir um vídeo-game).
Mas falava do Alexander, da vez que estive em sua casa. Antes de chegarmos, paramos num café, ele me pagou uma coca-cola. Ele me falava da Romênia, eu lhe falava do Brasil. Tenho certeza de que não acreditou em uma única palavra que lhe disse sobre o carnaval. Eu também não acreditei que Bucarest fosse linda. Saímos do café, seguimos pela rua da escola até a avenida, andamos por lugares que já não me lembro e chegamos à casa de Alexander. Pegamos a bola e fomos para uma praça.
Era uma praça grande, algumas crianças brincando, uns rapazes jogando bola. Nós ali, inventando um pretexto para nos aproximarmos, inventando um pretexto para nos sentirmos iguais, pois ambos intrusos ali. Quando cansamos, Alexander me pagou um suco (ele me pagava porque queria um suco para ele, como eu não tinha dinheiro para comprar o meu, e ele não queria que eu ficasse olhando, pagava para mim, mesmo eu recusando excessivamente).
Alexander então voltou para a sua casa, para a sua sala. Eu voltei para a pensão, com inveja da sala e do minúsculo apartamento dos pais de Alexander. Queria que minha família também estivesse habilitada assim. Cumprimentei-o normalmente nos dias seguintes, sem que o nosso passeio diminuísse a distância entre nós. Víamo-nos todos os dias, e, excetuando o sorriso sincero, era tudo indiferente.
Hoje, num canto qualquer do interior do Brasil, tapando os ouvidos para os sons de uma noite que para alguns é festa, sozinho no quarto, bate uma saudade danada do Alexander. Onde, onde estará Alexander?
Não sei. Mas hoje, hoje ele estará comigo.

Nunca estamos sozinhos

Tive meses de uma prostração sombria. Uma grande má vontade para com tudo. Um desejo, recalcado, de me subtrair à vida. Abandonei-me, senti vontade de correr e não mais parar, quis escorregar pelo beco sujo que é o destino. Mas, no momento decisivo, sobreveio o medo. O medo de me deixar cair e encontrar no fundo a minha imagem, o meu rosto contorcido num sorriso irônico, o meu olhar opaco a me dizer que era ainda ilusão.
Retorno. Não sei se para mim ou se para a vida. Ronda-me ainda a imprecisão do passo que não dei. Há mais de mil maneiras de se arrepender! Mas uma idéia, como uma agulha, espeta-me a consciência: não importa como, nunca estamos sozinhos.