"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

domingo, 25 de outubro de 2009

Em Lisboa, o que havia? [2]

Tenho toda a alma voltada para um corpo que não é o meu. Tenho todo o pensamento voltado para um cérebro que também não é o meu. E tenho, por fim, todo o sentimento voltado para o coração que nunca tive. Caem, sempre, com uma excepção remota, no mesmo sector responsável pelo pensamento. Não quero nada novo, nada que não seja meu – se é que alguma vez tive alguma coisa – mas quero, sim, o conformismo comigo mesmo. Mas isso parece-me impossível.
Não sei como nem quando comecei a ser assim, estranho em mim mesmo. Pode ter sido desde que nasci, como pode ter sido ontem. Facto é que ao decorrer do tempo pouco importei-me para isso e voltei minha atenção para o mundo exterior fútil, fétido e dramático que me empurram pela goela abaixo desde que nasci. Agora, olhando para mim, percebo apenas que não me percebo, que sou um simples estrangeiro na planície árida de minha alma.
Acho que entrei, quando devia ter saído.

Em Lisboa, o que havia?

Estou aqui, sozinho como sempre serei, com a vista cansada de tanto ler e com a mente exaurida de tanto sonhar o que leio. Não tenho nada para fazer e, se tivesse, provavelmente não o faria. Tenho sono, mas não quero dormir. Quando durmo não quero acordar. Dormirei, realmente, daqui a algumas horas. Dormirei, não por vontade de dormir, de deitar, relaxar, descansar meus olhos e minha mente do labor físico e intelectual, antes, porém, dormirei por não poder permanecer acordado… o que é pena! Amanhã, ou melhor, hoje - já passamos da meia-noite - não quererei acordar, mas, movido pelo burburinho rotineiro dos afazeres alheios, e pelas necessidades que o corpo me impõe, levantarei, entediado, conformado com o único resultado possível: o de me levantar e cumprir o extenso ritual da vida, da vida que me mandaram viver, mesmo que para isso eu precise estar morto. É estranho, é confuso… Sou estranho, sou confuso nesse mundo de confusões em que vagueio, solitário, paradoxalmente oposto a tudo o que me diz respeito. Gostaria de escrever tudo quanto penso, nos momentos mais inesperados, mais bizarros em que concebo parágrafos e parágrafos de ideias esplêndidas! Talvez as pessoas não o achassem mas acho-o eu. Escreveria, assim, um breve dicionário da minha alma, se isso me fosse possível. Mas não o é! À primeira tentativa de transmitir ao papel esses meus pensamentos, essas minhas premissas, tudo se esvai, dispersa-se, até sobrar, apegada a meus olhos longínquos, a poeira do que poderia ter sido. E nunca passo disso. Fica-me uma indescritível sensação, de perda e de incapacidade.
É triste tudo: ficar sempre na vontade de fazer as coisas, sem nunca as fazer. Sim, porque essa minha incapacidade vai muito para além de meus pensamentos literários, de minhas filosofias ilógicas sobre as coisas… Essa minha incapacidade é o que me torna incapaz a vida, é o que me faz vegetar, apenas, sem acção para o que se passa ao meu redor. Apenas sonho tudo isto, misturando ilusão com realidade, religião com ateísmo, humildade com vaidade, força com fraqueza… sonho e vida.
Sonho a vida! Sempre a sonhei… E é mais triste constatar que não vivo o sonho.