"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

quinta-feira, 18 de março de 2010

[Entre o perjúrio...]

Entre o perjúrio e o altar
mora um anjo que não sei quem é.
Não posso lhe descrever as asas,
a face, os olhos...
Não sei dele para além de que existe:
no entremente de uma dualidade una.
Esse anjo que existe mas não se sabe
Senta e espera, por não sei quê.
Alto é seu perjuro,
blasfemo seu altar.
Um roçagar de asas veladas arranha a noite.
A aurora se avizinha
e ele fica na rua,
até que o tempo e a última estrela
anunciam sua solidão.
(Anjos não dormem.)

[Quando Deus...]

Quando Deus mentia
eu era menos triste.
Ele dizia,
ou diziam por ele,
que um dia eu seria gente,
que um dia eu seria humano,
teria um grande amor
e vida de venturas!

Conheci todas elas,
essas mentiras divinas
contadas por homens.
Como conheci,
perdi.

Hoje não sonho mais.
Deus é uma brincadeira
dos tempos de infância,
perdida na ignorância
do menino vadio.
E eu sou triste.

[De manhã...]

De manhã é péssimo acordar
e saber de um novo dia que
por fim
Não será novo:
as mesmas coisas, as mesmas pessoas, o mesmo tédio.
Os mesmos sentimentos implosivos que preenchem
o vácuo de onde se sente.

O vazio... o vazio tem sido eu.

[Não tenho...]

Não tenho ambição,
nem mesmo a mais sadia.
Sou assim, vazio e incoercível.
Não trago o leve cheiro de aurora
em que outros conhecem paz.
Existo. E por momentos basta.
Mas momentos há em que queria ser tudo,
e outros em que não queria ser nada.

A urbe pobre

Rocinha imunda,
Fim-de-mundo vazio
que me tem.
Em que buraco Deus jogou minha vida?
Em que beco imundo de tuas ruas ficou perdida a minha alma?
Elegia de fracassos,
reino de idiota burguesia!
Por que existes?
Que te percas, que te afogues
no torvelinho de tua lama podre!
Morta, não exales odor algum,
pois a lembrança de tua existência ainda macularia
o nojo das coisas.

Paraíso fétido,
de imundícies hostis e hordas bárbaras
que se comem ao almoço.
Dobre tuas esquinas
e esconda-as nos bolsos.
Que os edifícios caiam
e que a poeira levantada encubra o sol
por quarenta séculos!
Que não chegue nenhum feixe de luz
à fealdade de tua face!
Perca a esperança de novos dias,
rocinha imunda;
Perca a vontade de mudar,
paraíso fétido.

Pois para mim sempre serás
a barriga horrível da qual saí.