"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

domingo, 26 de junho de 2011

Fumar

Quase dez minutos de intervalo
para minha consciência.
Trago, espero,
a fumaça para meus pulmões.
Depois espirro o trago por entre os dentes
e me divirto com o baile
que o sopro põe a dançar diante mim.
Então, inevitável a

tosse, tosse, tosse,
tusso, tusso, tusso.

Volta a consciência:
merda de tosse!
merda de cigarro!
merda de pulmões!

Pára. E trago de novo
o fumo para meu peito.
Aquilo foi uma dorzinha?
Do lado esquerdo das costas?
Sim, pode ser do pulmão...

Uma merda!

Tosse, tosse, tosse,
tusso, tusso, tusso.

Tenho que parar com isso.
Jogo fora.

Volta a consciência:
merda de vida!
merda de tédio!
merda de dia!

Culpa dela. Por onde anda?
E algo estoura em meu peito!
Será aquela dorzinha?
A do lado esquerdo das costas?
Não, essa é outra: de novo o coração...

Uma merda!
A outra doía menos
e desta me distraía...

Tudo é mesmo uma grande merda!

Me dá um cigarro?

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Sobre "Persona"





Li esses dias um artigo que me levou a rever Persona. O artigo relaciona o filme com alguns conceitos de Jung e Kierkegaard. Foi a parte sobre Jung que me despertou algumas reflexões além das contidas no tal artigo. Bergman parece jogar com dualismos: Elizabeth, a atriz, procura a sua verdade, procura-se, pelo silêncio, anulando a palavra que sempre lhe foi artifício, tanto no palco quanto na vida; Alma, a enfermeira, reservada, se encontra (confrontando-se), pela palavra, saindo da posição de reserva que até então se mantinha. A palavra é, ao mesmo tempo, capaz de ocultar a primeira e revelar a segunda. Dizia que Alma se encontra confrontando-se... Na verdade, quando Elizabeth e Alma vão para a casa de praia, dirigem-se para lá com o único propósito de fundirem-se, de tornarem-se uma mesma persona. Por isso, acho que podemos dizer que Alma somente se confronta pela presença do outro, de Elizabeth, de modo que é o outro que faz com que ela se torne ela mesma, para si e para o outro, fundindo-se com ele (no caso, com ela). O silêncio é o que permite a comunicação, a comunicação sincera, o esvaziar-se para o outro. O silêncio de Elizabeth força Alma a falar, de início a falar mais para si mesma que para Elizabeth, e aos poucos, como se ganhasse confiança por não ouvir reprovações, nem por ver cortada a sua palavra (o que sempre acontece no momento exato em que estamos para dividir algo com alguém), tendo certeza de que pode falar até o fim, pois é a única voz naquele ambiente, conta a Alma a orgia que praticara. O silêncio chamando a verdade. As posições acabam por se inverter: Alma, que deveria assistir a Elizabeth, converte-se em paciente, e a última começa a estudá-la. Alma seria uma espécie de inconsciente despertado pelo silêncio de Elizabeth e estudado por ela. No entanto, neste estudo, que de início é uma distração para Elizabeth, há o risco daquele que o empreende se perder, pois se deixa seduzir por ele, e o inconsciente, ou seja, Alma, sabe coisas sobre o consciente mesmo que este não as diga (ex: Alma sabe da relação de Elizabeth com o filho, mesmo esta nada lhe contando). Nesse ponto o inconsciente começa a incidir no consciente, até fundirem-se e tornarem-se uma coisa só (não sei, talvez chamada “eu”). Já nas cenas finais Alma tenta fazer com que Elizabeth repita: “Nada”. O consciente, Elizabeth, é incapaz de fazê-lo, pois ter consciência é existir e a existência não afirma o nada. O inconsciente (Alma), no entanto, é capaz de fazê-lo, pois é a negação do primeiro, e afoga a verdade (orgia) no nada para continuar vivendo sua persona. Talvez a pergunta final seja: o que fazer? Afogar a verdade que nos espeta no nada e continuar vivendo tentando fechar os olhos para ela, como fez Alma, ou assumir-se como o ser que é, em todo o seu desespero, experimentando a verdade angustiante de si mesmo e viver-se, viver como si mesmo, ainda que isso seja mais penoso? Não darei uma resposta, pois há quase um ano essa questão me incomoda. Parece-me haver um dilema moral nisso tudo, e percebo-o com relação a Alma, personagem que me é mais interessante. A persona é a máscara com a qual nos apresentamos ao outro, à sociedade em geral, e temos alguma consciência dela, acho até que boa consciência dela; mas, por outro lado, não conhecemos nossa verdadeira natureza, e nem nós mesmos sabemos o que ocultamos detrás da máscara, detrás da persona. Tendo Alma agido de forma tão diferente de sua persona, ela seria, na verdade, aquela que empreendeu o ato, aquela que estava agindo no momento da orgia seria a Alma de verdade, ou, ao contrário, a verdadeira Alma é a que se arrepende daquilo e a persona passaria a ser ela mesma, a natureza de Alma? Tendo em mente estas duas esferas, a natureza humana do sujeito individual e sua persona, será possível julgá-la, não segundo a moral social, mas segundo uma ética própria, uma ética que pertencesse a Alma? Pois, caso a condenássemos, agir com ética seria agir segundo a persona, e não segundo si mesmo, segundo sua própria natureza. No entanto, se a absolvêssemos, todo o resto de sua existência teria de ser condenada, pois agiu segundo sua natureza própria apenas na orgia.
O filme-poema que abre Persona sugere um sacrifício com a morte do carneiro e uma expiação com a cena da crucificação. Seria alguma sugestão para Alma e Elizabeth (note que acima me referi apenas a Alma, mas o mesmo vale para Elizabeth; apenas acho Alma mais interessante, por ser mais comum)?
Outra coisa interessante que reparei no filme-poema: no fim, o garoto olha direto para a câmera, como se estivesse a olhar o espectador, e passa a mão no que seria o foco da lente, como se passasse a mão no rosto do espectador; depois o ângulo muda e vemos que ele passa a mão nos rostos desfocados de Alma e Elizabeth. Bergman está dizendo que também o espectador é uma persona. No final do filme podemos ver o próprio Bergman e a sua câmera, filmando a última cena, como se mostrasse que o filme é também uma persona. Somos, a persona que aparentamos ser, tão irreais (ou reais) quanto um filme.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Será que se lembra?

Mais um poema antigo. É sempre divertido ler essas coisas antigas que reencontramos depois de tanto tempo jogadas pelos cantos, esquecidas. Este é de quando tinha 15 ou 16 anos...

SERÁ QUE SE LEMBRA?

Será que você ainda se lembra?
Será que você se lembra de mim?
Será que se lembra do que jogou fora?
Será que se lembra do que disse no fim?
Será que se lembra como eu gritava?
Será que se lembra o que eu disse a você?
Será que se lembra do que lhe guardava?

Será que se lembra e quer se esquecer?

Será que você ainda se lembra?
Será que você se lembra de mim?
Será que se lembra da última hora?
Será que se lembra quando disse que sim?
Será que se lembra como eu te amava?
Será que se lembra o que eu quis fazer?
Será que se lembra do que me matava?

Será que se lembra e quer esquecer?

Hoje serei o que com você não seria?
Hoje serei como queria ser?
Hoje serei o ser que seria?
Hoje serei sendo em você?
Hoje serei um mar que afogou?
Hoje serei o que o fogo queimou?
Hoje serei o que o vento levou?
Hoje serei o que a terra enterrou?

Hoje serei o tempo que pára?
Hoje serei o que ninguém pode ver?
Hoje serei grito que cala?
Hoje serei ou quererei ser?
Hoje serei só solidão?
Hoje serei vinho sem pão?

Será que se lembra e quer esquecer?

Não sou nada que o tempo tratou de apagar.
Não sou nada que o vento tentou sufocar.
Não sou nada que o fogo tentou consumir.
Não sou nada que Deus tentou redimir.
Não sou nada que o tudo quis se apossar.
Não sou nada que o rio trouxe pr'o mar.
Não sou nada que o início tentou acabar.

Não sou nada que possa existir sem te amar.
Não sou nada que suba e não possa cair.
Não sou nada que viva sem pensar em ti.
Não sou nada que ame e quer esquecer.
Não sou nada que morra e não queira viver.
Não sou nada que chova se não te molhar.
Não sou nada que exista se não te amar.

E será que se lembra, mas quer esquecer?
Ou será que se lembra do que era eu e você?

Sobre "Ondas do Destino"

Onde deixei o meu amor? Entregue à sorte do vento, de um sopro diáfano que paira, profano e puro, em olhos azuis carregados pela loucura de quem não sabe amar? Soube, eu, amar? Soube o que é o amor? Não me façam perguntas que não sei responder. Nada sei de mim, nem dela, nem dele. Apenas vi, e era melhor não ter visto. Era melhor não ter que aceitar, dia após dia, que não sei, nunca saberei, que espécie de sentimento é esse que faz com que rompamos os liames últimos da segurança que desejamos. Que espécie, que espécie de sentimento é esse que desconheço? É preciso se entregar, é preciso acreditar no impossível para viver? Então, acho que não sirvo para a vida, não sirvo para o amor, nem deveria estar aqui.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Riobaldo: duas vezes pACTUário?

Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia.” A partir dessas palavras de Riobaldo, se construirá a interpretação de que, de fato, o cujo é pactuário. O Grande Sertão é atravessado pelo demo, seu narrador assume como um dos motes de sua fala a dúvida sobre a existência ou não do diabo, jogando sempre para o interlocutor a última palavra que corroboraria o aspecto negativo da dúvida, ou seja, a inexistência do diabo. A meu ver, o que Riobaldo procura, como personagem, é o conforto da alma, pois a inexistência do diabo desmancharia sua ligação com ele, dada pelo pacto. Por outro lado, Riobaldo não é só personagem, mas também narrador, portanto, construtor da estória, artífice da palavra. Afigura-se-nos, assim, duas dimensões de análise, que devem levar em conta Riobaldo e seu interlocutor (o senhor que por lá está de passagem): 1) Riobaldo-personagem + interlocutor-personagem: a problemática incidiria no conteúdo do narrado, reverberando nas inquietações de Riobaldo no sentido religioso; 2) Riobaldo-narrador + interlocutor-leitor: a problemática recairia na estrutura da narração, na linguagem. As duas equações são possíveis, uma vez que o romance passa a sensação de que o interlocutor de Riobaldo é o leitor, de modo que se tem a impressão de que nós mesmos estamos conversando com ele, de que o Riobaldo narrador joga a questão para o leitor, às vezes ironizando, “invejando” sua instrução. Apesar de ter feito apenas uma leitura da obra, penso, nesse primeiro momento, e noto que ainda não me distanciei do texto como seria importante fazer, que Riobaldo não fez simplesmente um pacto com o diabo, mas dois, um enquanto personagem, outro enquanto narrador; ele é duplamente pactuário. Tentando sustentar minha posição, me valerei de duas chaves de leitura: para a primeira equação, uma leitura kierkegaardiana; para a segunda, uma leitura flusseriana. Não acredito em “leituras despidas”, onde o leitor ou crítico se coloca nu diante do texto: na apreciação de qualquer obra de arte, qualquer que seja ela, trazemos de antemão os óculos de preconceitos formados nessa nossa perambulação pelo mundo. Se a obra é “o que deve ser interpretado”, há um “acontecimento da interpretação” [Gadamer], e, por se tratar de um acontecimento, é sempre dependente do contexto onde acontece.

1) Riobaldo-personagem + interlocutor-personagem: Kierkegaard vai ao sertão

Em Temor e Tremor, o pseudônimo Johannes de Silentio trata, já nas páginas finais, da figura de Fausto. Como se sabe, é nessa lenda que se dá de forma mais nítida a temática do pacto, que Kierkegaard/Johannes avalia sob o signo da dúvida. Afinal, por que Fausto pactua com o diabo? Porque duvida. Os livros, a ciência, a vida moral, não oferecem respostas para a sua procura, a cura da peste que assola a cidade. Incompleto e insatisfeito com a razão, quando ela não é mais capaz de proporcionar o que deseja, ele sela o pacto. Fausto seria o Cavaleiro da Resignação: ao contrário do Cavaleiro da Fé, identificado com Abraão, ele não é capaz de se desfazer da razão e acreditar no absurdo, em ter fé que, por mais que seja impossível, Deus fará atravessar o milagre no seio da impossibilidade e lhe dará o que deseja. São linhas gerais, que apenas situam o sentido da discussão empreendida pelo pseudônimo de Kierkegaard. Servem para pensar Riobaldo como ser de dúvida e despido de individualidade, no sentido de que não se constrói, mas sempre se deixa construir (entra na jagunçagem quase que por acaso, Diadorim o conduz como a um menino desde a cena da travessia do São Francisco, e quando assume o estatuto de Urutu-Branco, de chefe do bando, percebe-se que não há nele uma figura de liderança, que não serve para chefe, como ele mesmo percebe, recorrendo sempre a cogitações sobre o que faria Zé Bebelo ou Medeiros Vaz em determinada situação). Riobaldo não se assume a si mesmo, e deixa se levar pelo trote dos acontecimentos (daí o nome: rio + baldio; e Diadorim, que o conduz, que atravessa esse rio: diá, do grego, “através de”; “-dorim”, segundo um amigo de conversas rosianas, poderia ser contração de dor + em + mim).

A dúvida de Riobaldo é o próprio eu, quem e como ele é. Riobaldo não se encontra, é sinuoso como um rio (mais um contributo do amigo de querelas literárias acima citado: todos os nomes que Riobaldo assume sugerem sinuosidade, como “Tatarana”, lagarta de fogo, e “Urutu-Branco”, pois urutu é uma espécie de cobra). Se escapa. Ele sempre quer ser um outro: de menino, inveja Diadorim; depois Zé Bebelo; o próprio Hermógenes! Esse não se encontrar e o ruminar sombrio da consciência sem foco de Riobaldo são sintomas da dúvida. Pensa e repensa, não se concentra e forma o eu, e a dúvida atinge o ápice quando esses movimentos precisam de justificação. O lado da dúvida que parece ruim deve ser do demo, mas se ele não existe? Riobaldo acaba por querer negar a existência do demo, mas sem negar sua ação:

“Ele [o demo] não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia.”

A inexistência ontológica, nesse caso, não retira do ser-que-não-é o campo axiológico: o demo não é, mas está; o demo não há, mas faz. Portanto, mesmo que o diabo não exista, ele é capaz de firmar trato com Riobaldo, é capaz de pactuar, pois o demo é verbo (esse ponto será explorado na segunda equação). Assim, o reflexo, a consequência do pacto, não deve ser procurada em Riobaldo sob uma perspectiva de cunho ontológico, pois ao ontológico a resposta seria um sonoro “nonada”, mas em uma perspectiva axiológica, procurando o caráter demoníaco nas ações de Riobaldo após o pacto.

Surge mais uma vez Kierkegaard. Na análise sobre Fausto, este é considerado como alguém de caráter “demoníaco”, no sentido em que é capaz de se distanciar do finito, da imediatidade, mas sempre se colocando em uma posição de superioridade e/ou isolamento em relação aos outros. Assim é Riobaldo, que não se sente um igual em meio aos jagunços, que pensa para além da realidade imediatamente dada, mas se isola e se quer mais que os demais. Aliás, ele só faz o pacto para não ter Hermógenes acima dele, pois se este é pactuário, ele também tem de ser. E após o pacto Riobaldo altera-se, torna-se ríspido, rude (como na cena em que promete matar o primeiro que se lhe assomar na estrada). Riobaldo assume um caráter demoníaco, e mesmo não havendo o diabo, a sua disposição de espírito ao se resolver pelo pacto e após o pacto revela, através de seus atos, que ele verdadeiramente pactuou, pois sente-se como se. A consciência assolada pela dívida com o demo, a tentativa de se livrar dela pela negação de sua existência, se arrasta até as linhas finais do romance:

“Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for...”

Mais uma vez transparece a dúvida: “se for...”; mais uma vez a necessidade da corroboração do interlocutor-personagem: “Pois não?”. Riobaldo quer se desfazer da dívida, mas não adianta: a carência ontológica não restringe o campo axiológico do demo no sertão, mesmo não existindo age, e age por Riobaldo, que agiu como pactuário. Portanto, e essa é a nossa conclusão, mesmo que ontologicamente o pacto não tenha sido feito, uma vez que o diabo não existe, o foi axologicamente, pois Riobaldo agiu como se. Assim, nesse ponto, resolve-se a questão: Riobaldo fez o pacto.

2) Riobaldo-narrador + interlocutor-leitor: Flusser volta do sertão

Nosso segundo ponto será menos extenso, pois se concentra na linguagem de Guimarães Rosa, que é terreno para nós por demais pantanoso, uma vez que não possuímos a erudição nem o arcabouço teórico necessário. Partimos de algo que o texto fornece logo nas primeiras impressões: o personagem que conversa com Riobaldo é, ao mesmo tempo, um personagem da estória, sentado com a sua caderneta de anotações na varanda da fazenda, e o próprio leitor. Rosa chama o leitor para dentro do romance, faz dele seu personagem, volta para ele as questões de Riobaldo, incitando-o a pensar e a se decidir em relação aos problemas do jagunço. Aos poucos, nos acomodamos no tamborete, relaxamos um pouco os braços e nos inclinamos para ouvir a narração: quando se dá conta, já estamos a divagar e a procurar as respostas, crentes de nossa invejada “instrução”, para os dilemas de Riobaldo.

Rosa torce a língua, torce o texto, de modo a transformá-lo numa faca de dois gumes, onde se é simultaneamente leitor e personagem. Interessa-nos agora a dimensão de leitor. Como leitor, a primeira coisa que se sente é o estranhamento do texto: não se trata nem de um texto redigido sob a chamada “norma culta da língua”, nem de um texto “coloquial”. O texto é como Riobaldo: nem uma coisa, nem outra. Há coloquialismos e há erudição, mas, afinal, conserva o que é próprio da literatura: a violência da linguagem cotidiana, como notou o formalismo russo. A presença forte do coloquialismo, da linguagem sertaneja, é a peleja do Riobaldo-narrador contra o hermético (peleja que é reflexo da do Riobaldo-personagem contra Hermógenes). É Vilém Flusser quem nos aponta para essa direção:

“E é justamente contra essa hermetização, essa intelectualização e conceitualização que Riobaldo luta. Hermes, o pai dos hermógenes, é o intelecto ensimesmado, fechado hermeticamente sobre si mesmo, é o demo contra o qual Riobaldo lança o desafio do nonada.”

O Riobaldo-narrador transubstancia a língua, vale-se do coloquial para sua luta contra o demo. A língua culta não é apta para sua realidade, pois é fechada e regida por regras gramaticais e sintáticas, e não é capaz de dar a ver a realidade da consciência. Mas funde-se no texto à erudição, não é capaz de firmar-se por si mesma, como o Riobaldo-personagem não o é, e vai buscar na erudição, em jogos de palavras, palavras forjadas a partir de outras línguas, o seu apoio. Então o texto se nos mostra muitas vezes hermético, de dificílima compreensão, rico em neologismos e significados: hermético. O Riobaldo-narrador também pactua, e, nesse caso, o demo é a língua culta, a erudição, que violenta e fere a linguagem cotidiana. Daí a linguagem do Grande Sertão não ser linguagem do sertão, mas de um sertão outro de Riobaldo.

No entanto, a nosso ver, o pacto aqui possui um aspecto positivo, pois o diálogo entre o coloquial e o erudito é necessário para a criação de uma nova realidade, a realidade do próprio romance. A língua se mostra em todo seu potencial criador, criador de realidade, pois, moldada assim, atua como categoria que orienta o olhar do homem e faz com que ele crie um mundo novo (o homem cria o mundo, no sentido heideggeriano). Sem essa fusão, Grande Sertão não poderia ser escrito e a língua não se mostraria em todo seu potencial criador e filosófico (como nota Flusser: “Nonada”: “não nada”, “não é nada”, “não há nada” etc.: “o nada nadifica”; uma possibilidade). Em contrapartida, não há quem não considere o texto de Rosa hermético, e esse é seu lado demoníaco negativo, herdado dos hermógenes. Assim, percebe-se que o coloquialismo pactua com o erudito, e o erudito, por ocultar e fechar o texto, é o demoníaco, o Hermógenes. Mais uma vez, Riobaldo pactua.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

História em V atos - Ato IV

Dormir? Dormir é um luxo. O sono, pássaro arisco da arapuca que faço de mim mesmo, bate asas para longe quando penso em agarrá-lo e inundar meus olhos. Dormir. Seria bom. Mas em minha cama rondam cheiros, frios, pairam em meus ombros espectros de perdidas carícias, roçam meus cabelos dedos que nunca beijarei. Memória: a vassoura dos olhos.
O céu quase sem nuvens lá fora, algumas estrelas, a lua minguante afia sua foice e o vento do movimento sopra para longe qualquer possibilidade de quietude. Cabelos longos, negros, muito negros, escorrem - intrusos? - pelos meus ombros sugerindo nunca serem meus. Gestos esboçados; palavras reticentes. O vermelho de uma boca que se recolhe e esconde. Lembranças, são só lembranças, tecido de brisas que me cobre feito lençol.
O que não fiz, o que deixei de fazer por preferir sonhar? Dormiria se tivesse passado dos esboços? Dormiria se trocasse as reticências por uma exaltada exclamação? Talvez dormisse hoje, talvez amanhã, quem sabe algumas semanas! Mas depois, passado o princípio de tudo, o desespero voltaria (sempre volta), carregando no lombo o peso de não ter protegido quem nunca será minha. O desespero, esse animal de carga.
Assim me fiz, quieto e amiúde, talhado para a noite, para reviver na noite o que a eternidade e seus dias não me permitiram ter. Tenho a mim, espelho embaçado: chegou-me apenas seu hálito, e isso foi suficiente para que a realidade perdesse totalmente seu sentido.