"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Sobre "Persona"





Li esses dias um artigo que me levou a rever Persona. O artigo relaciona o filme com alguns conceitos de Jung e Kierkegaard. Foi a parte sobre Jung que me despertou algumas reflexões além das contidas no tal artigo. Bergman parece jogar com dualismos: Elizabeth, a atriz, procura a sua verdade, procura-se, pelo silêncio, anulando a palavra que sempre lhe foi artifício, tanto no palco quanto na vida; Alma, a enfermeira, reservada, se encontra (confrontando-se), pela palavra, saindo da posição de reserva que até então se mantinha. A palavra é, ao mesmo tempo, capaz de ocultar a primeira e revelar a segunda. Dizia que Alma se encontra confrontando-se... Na verdade, quando Elizabeth e Alma vão para a casa de praia, dirigem-se para lá com o único propósito de fundirem-se, de tornarem-se uma mesma persona. Por isso, acho que podemos dizer que Alma somente se confronta pela presença do outro, de Elizabeth, de modo que é o outro que faz com que ela se torne ela mesma, para si e para o outro, fundindo-se com ele (no caso, com ela). O silêncio é o que permite a comunicação, a comunicação sincera, o esvaziar-se para o outro. O silêncio de Elizabeth força Alma a falar, de início a falar mais para si mesma que para Elizabeth, e aos poucos, como se ganhasse confiança por não ouvir reprovações, nem por ver cortada a sua palavra (o que sempre acontece no momento exato em que estamos para dividir algo com alguém), tendo certeza de que pode falar até o fim, pois é a única voz naquele ambiente, conta a Alma a orgia que praticara. O silêncio chamando a verdade. As posições acabam por se inverter: Alma, que deveria assistir a Elizabeth, converte-se em paciente, e a última começa a estudá-la. Alma seria uma espécie de inconsciente despertado pelo silêncio de Elizabeth e estudado por ela. No entanto, neste estudo, que de início é uma distração para Elizabeth, há o risco daquele que o empreende se perder, pois se deixa seduzir por ele, e o inconsciente, ou seja, Alma, sabe coisas sobre o consciente mesmo que este não as diga (ex: Alma sabe da relação de Elizabeth com o filho, mesmo esta nada lhe contando). Nesse ponto o inconsciente começa a incidir no consciente, até fundirem-se e tornarem-se uma coisa só (não sei, talvez chamada “eu”). Já nas cenas finais Alma tenta fazer com que Elizabeth repita: “Nada”. O consciente, Elizabeth, é incapaz de fazê-lo, pois ter consciência é existir e a existência não afirma o nada. O inconsciente (Alma), no entanto, é capaz de fazê-lo, pois é a negação do primeiro, e afoga a verdade (orgia) no nada para continuar vivendo sua persona. Talvez a pergunta final seja: o que fazer? Afogar a verdade que nos espeta no nada e continuar vivendo tentando fechar os olhos para ela, como fez Alma, ou assumir-se como o ser que é, em todo o seu desespero, experimentando a verdade angustiante de si mesmo e viver-se, viver como si mesmo, ainda que isso seja mais penoso? Não darei uma resposta, pois há quase um ano essa questão me incomoda. Parece-me haver um dilema moral nisso tudo, e percebo-o com relação a Alma, personagem que me é mais interessante. A persona é a máscara com a qual nos apresentamos ao outro, à sociedade em geral, e temos alguma consciência dela, acho até que boa consciência dela; mas, por outro lado, não conhecemos nossa verdadeira natureza, e nem nós mesmos sabemos o que ocultamos detrás da máscara, detrás da persona. Tendo Alma agido de forma tão diferente de sua persona, ela seria, na verdade, aquela que empreendeu o ato, aquela que estava agindo no momento da orgia seria a Alma de verdade, ou, ao contrário, a verdadeira Alma é a que se arrepende daquilo e a persona passaria a ser ela mesma, a natureza de Alma? Tendo em mente estas duas esferas, a natureza humana do sujeito individual e sua persona, será possível julgá-la, não segundo a moral social, mas segundo uma ética própria, uma ética que pertencesse a Alma? Pois, caso a condenássemos, agir com ética seria agir segundo a persona, e não segundo si mesmo, segundo sua própria natureza. No entanto, se a absolvêssemos, todo o resto de sua existência teria de ser condenada, pois agiu segundo sua natureza própria apenas na orgia.
O filme-poema que abre Persona sugere um sacrifício com a morte do carneiro e uma expiação com a cena da crucificação. Seria alguma sugestão para Alma e Elizabeth (note que acima me referi apenas a Alma, mas o mesmo vale para Elizabeth; apenas acho Alma mais interessante, por ser mais comum)?
Outra coisa interessante que reparei no filme-poema: no fim, o garoto olha direto para a câmera, como se estivesse a olhar o espectador, e passa a mão no que seria o foco da lente, como se passasse a mão no rosto do espectador; depois o ângulo muda e vemos que ele passa a mão nos rostos desfocados de Alma e Elizabeth. Bergman está dizendo que também o espectador é uma persona. No final do filme podemos ver o próprio Bergman e a sua câmera, filmando a última cena, como se mostrasse que o filme é também uma persona. Somos, a persona que aparentamos ser, tão irreais (ou reais) quanto um filme.

Nenhum comentário: