"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

terça-feira, 14 de junho de 2011

Riobaldo: duas vezes pACTUário?

Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia.” A partir dessas palavras de Riobaldo, se construirá a interpretação de que, de fato, o cujo é pactuário. O Grande Sertão é atravessado pelo demo, seu narrador assume como um dos motes de sua fala a dúvida sobre a existência ou não do diabo, jogando sempre para o interlocutor a última palavra que corroboraria o aspecto negativo da dúvida, ou seja, a inexistência do diabo. A meu ver, o que Riobaldo procura, como personagem, é o conforto da alma, pois a inexistência do diabo desmancharia sua ligação com ele, dada pelo pacto. Por outro lado, Riobaldo não é só personagem, mas também narrador, portanto, construtor da estória, artífice da palavra. Afigura-se-nos, assim, duas dimensões de análise, que devem levar em conta Riobaldo e seu interlocutor (o senhor que por lá está de passagem): 1) Riobaldo-personagem + interlocutor-personagem: a problemática incidiria no conteúdo do narrado, reverberando nas inquietações de Riobaldo no sentido religioso; 2) Riobaldo-narrador + interlocutor-leitor: a problemática recairia na estrutura da narração, na linguagem. As duas equações são possíveis, uma vez que o romance passa a sensação de que o interlocutor de Riobaldo é o leitor, de modo que se tem a impressão de que nós mesmos estamos conversando com ele, de que o Riobaldo narrador joga a questão para o leitor, às vezes ironizando, “invejando” sua instrução. Apesar de ter feito apenas uma leitura da obra, penso, nesse primeiro momento, e noto que ainda não me distanciei do texto como seria importante fazer, que Riobaldo não fez simplesmente um pacto com o diabo, mas dois, um enquanto personagem, outro enquanto narrador; ele é duplamente pactuário. Tentando sustentar minha posição, me valerei de duas chaves de leitura: para a primeira equação, uma leitura kierkegaardiana; para a segunda, uma leitura flusseriana. Não acredito em “leituras despidas”, onde o leitor ou crítico se coloca nu diante do texto: na apreciação de qualquer obra de arte, qualquer que seja ela, trazemos de antemão os óculos de preconceitos formados nessa nossa perambulação pelo mundo. Se a obra é “o que deve ser interpretado”, há um “acontecimento da interpretação” [Gadamer], e, por se tratar de um acontecimento, é sempre dependente do contexto onde acontece.

1) Riobaldo-personagem + interlocutor-personagem: Kierkegaard vai ao sertão

Em Temor e Tremor, o pseudônimo Johannes de Silentio trata, já nas páginas finais, da figura de Fausto. Como se sabe, é nessa lenda que se dá de forma mais nítida a temática do pacto, que Kierkegaard/Johannes avalia sob o signo da dúvida. Afinal, por que Fausto pactua com o diabo? Porque duvida. Os livros, a ciência, a vida moral, não oferecem respostas para a sua procura, a cura da peste que assola a cidade. Incompleto e insatisfeito com a razão, quando ela não é mais capaz de proporcionar o que deseja, ele sela o pacto. Fausto seria o Cavaleiro da Resignação: ao contrário do Cavaleiro da Fé, identificado com Abraão, ele não é capaz de se desfazer da razão e acreditar no absurdo, em ter fé que, por mais que seja impossível, Deus fará atravessar o milagre no seio da impossibilidade e lhe dará o que deseja. São linhas gerais, que apenas situam o sentido da discussão empreendida pelo pseudônimo de Kierkegaard. Servem para pensar Riobaldo como ser de dúvida e despido de individualidade, no sentido de que não se constrói, mas sempre se deixa construir (entra na jagunçagem quase que por acaso, Diadorim o conduz como a um menino desde a cena da travessia do São Francisco, e quando assume o estatuto de Urutu-Branco, de chefe do bando, percebe-se que não há nele uma figura de liderança, que não serve para chefe, como ele mesmo percebe, recorrendo sempre a cogitações sobre o que faria Zé Bebelo ou Medeiros Vaz em determinada situação). Riobaldo não se assume a si mesmo, e deixa se levar pelo trote dos acontecimentos (daí o nome: rio + baldio; e Diadorim, que o conduz, que atravessa esse rio: diá, do grego, “através de”; “-dorim”, segundo um amigo de conversas rosianas, poderia ser contração de dor + em + mim).

A dúvida de Riobaldo é o próprio eu, quem e como ele é. Riobaldo não se encontra, é sinuoso como um rio (mais um contributo do amigo de querelas literárias acima citado: todos os nomes que Riobaldo assume sugerem sinuosidade, como “Tatarana”, lagarta de fogo, e “Urutu-Branco”, pois urutu é uma espécie de cobra). Se escapa. Ele sempre quer ser um outro: de menino, inveja Diadorim; depois Zé Bebelo; o próprio Hermógenes! Esse não se encontrar e o ruminar sombrio da consciência sem foco de Riobaldo são sintomas da dúvida. Pensa e repensa, não se concentra e forma o eu, e a dúvida atinge o ápice quando esses movimentos precisam de justificação. O lado da dúvida que parece ruim deve ser do demo, mas se ele não existe? Riobaldo acaba por querer negar a existência do demo, mas sem negar sua ação:

“Ele [o demo] não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia.”

A inexistência ontológica, nesse caso, não retira do ser-que-não-é o campo axiológico: o demo não é, mas está; o demo não há, mas faz. Portanto, mesmo que o diabo não exista, ele é capaz de firmar trato com Riobaldo, é capaz de pactuar, pois o demo é verbo (esse ponto será explorado na segunda equação). Assim, o reflexo, a consequência do pacto, não deve ser procurada em Riobaldo sob uma perspectiva de cunho ontológico, pois ao ontológico a resposta seria um sonoro “nonada”, mas em uma perspectiva axiológica, procurando o caráter demoníaco nas ações de Riobaldo após o pacto.

Surge mais uma vez Kierkegaard. Na análise sobre Fausto, este é considerado como alguém de caráter “demoníaco”, no sentido em que é capaz de se distanciar do finito, da imediatidade, mas sempre se colocando em uma posição de superioridade e/ou isolamento em relação aos outros. Assim é Riobaldo, que não se sente um igual em meio aos jagunços, que pensa para além da realidade imediatamente dada, mas se isola e se quer mais que os demais. Aliás, ele só faz o pacto para não ter Hermógenes acima dele, pois se este é pactuário, ele também tem de ser. E após o pacto Riobaldo altera-se, torna-se ríspido, rude (como na cena em que promete matar o primeiro que se lhe assomar na estrada). Riobaldo assume um caráter demoníaco, e mesmo não havendo o diabo, a sua disposição de espírito ao se resolver pelo pacto e após o pacto revela, através de seus atos, que ele verdadeiramente pactuou, pois sente-se como se. A consciência assolada pela dívida com o demo, a tentativa de se livrar dela pela negação de sua existência, se arrasta até as linhas finais do romance:

“Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for...”

Mais uma vez transparece a dúvida: “se for...”; mais uma vez a necessidade da corroboração do interlocutor-personagem: “Pois não?”. Riobaldo quer se desfazer da dívida, mas não adianta: a carência ontológica não restringe o campo axiológico do demo no sertão, mesmo não existindo age, e age por Riobaldo, que agiu como pactuário. Portanto, e essa é a nossa conclusão, mesmo que ontologicamente o pacto não tenha sido feito, uma vez que o diabo não existe, o foi axologicamente, pois Riobaldo agiu como se. Assim, nesse ponto, resolve-se a questão: Riobaldo fez o pacto.

2) Riobaldo-narrador + interlocutor-leitor: Flusser volta do sertão

Nosso segundo ponto será menos extenso, pois se concentra na linguagem de Guimarães Rosa, que é terreno para nós por demais pantanoso, uma vez que não possuímos a erudição nem o arcabouço teórico necessário. Partimos de algo que o texto fornece logo nas primeiras impressões: o personagem que conversa com Riobaldo é, ao mesmo tempo, um personagem da estória, sentado com a sua caderneta de anotações na varanda da fazenda, e o próprio leitor. Rosa chama o leitor para dentro do romance, faz dele seu personagem, volta para ele as questões de Riobaldo, incitando-o a pensar e a se decidir em relação aos problemas do jagunço. Aos poucos, nos acomodamos no tamborete, relaxamos um pouco os braços e nos inclinamos para ouvir a narração: quando se dá conta, já estamos a divagar e a procurar as respostas, crentes de nossa invejada “instrução”, para os dilemas de Riobaldo.

Rosa torce a língua, torce o texto, de modo a transformá-lo numa faca de dois gumes, onde se é simultaneamente leitor e personagem. Interessa-nos agora a dimensão de leitor. Como leitor, a primeira coisa que se sente é o estranhamento do texto: não se trata nem de um texto redigido sob a chamada “norma culta da língua”, nem de um texto “coloquial”. O texto é como Riobaldo: nem uma coisa, nem outra. Há coloquialismos e há erudição, mas, afinal, conserva o que é próprio da literatura: a violência da linguagem cotidiana, como notou o formalismo russo. A presença forte do coloquialismo, da linguagem sertaneja, é a peleja do Riobaldo-narrador contra o hermético (peleja que é reflexo da do Riobaldo-personagem contra Hermógenes). É Vilém Flusser quem nos aponta para essa direção:

“E é justamente contra essa hermetização, essa intelectualização e conceitualização que Riobaldo luta. Hermes, o pai dos hermógenes, é o intelecto ensimesmado, fechado hermeticamente sobre si mesmo, é o demo contra o qual Riobaldo lança o desafio do nonada.”

O Riobaldo-narrador transubstancia a língua, vale-se do coloquial para sua luta contra o demo. A língua culta não é apta para sua realidade, pois é fechada e regida por regras gramaticais e sintáticas, e não é capaz de dar a ver a realidade da consciência. Mas funde-se no texto à erudição, não é capaz de firmar-se por si mesma, como o Riobaldo-personagem não o é, e vai buscar na erudição, em jogos de palavras, palavras forjadas a partir de outras línguas, o seu apoio. Então o texto se nos mostra muitas vezes hermético, de dificílima compreensão, rico em neologismos e significados: hermético. O Riobaldo-narrador também pactua, e, nesse caso, o demo é a língua culta, a erudição, que violenta e fere a linguagem cotidiana. Daí a linguagem do Grande Sertão não ser linguagem do sertão, mas de um sertão outro de Riobaldo.

No entanto, a nosso ver, o pacto aqui possui um aspecto positivo, pois o diálogo entre o coloquial e o erudito é necessário para a criação de uma nova realidade, a realidade do próprio romance. A língua se mostra em todo seu potencial criador, criador de realidade, pois, moldada assim, atua como categoria que orienta o olhar do homem e faz com que ele crie um mundo novo (o homem cria o mundo, no sentido heideggeriano). Sem essa fusão, Grande Sertão não poderia ser escrito e a língua não se mostraria em todo seu potencial criador e filosófico (como nota Flusser: “Nonada”: “não nada”, “não é nada”, “não há nada” etc.: “o nada nadifica”; uma possibilidade). Em contrapartida, não há quem não considere o texto de Rosa hermético, e esse é seu lado demoníaco negativo, herdado dos hermógenes. Assim, percebe-se que o coloquialismo pactua com o erudito, e o erudito, por ocultar e fechar o texto, é o demoníaco, o Hermógenes. Mais uma vez, Riobaldo pactua.

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