"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

quarta-feira, 8 de junho de 2011

História em V atos - Ato IV

Dormir? Dormir é um luxo. O sono, pássaro arisco da arapuca que faço de mim mesmo, bate asas para longe quando penso em agarrá-lo e inundar meus olhos. Dormir. Seria bom. Mas em minha cama rondam cheiros, frios, pairam em meus ombros espectros de perdidas carícias, roçam meus cabelos dedos que nunca beijarei. Memória: a vassoura dos olhos.
O céu quase sem nuvens lá fora, algumas estrelas, a lua minguante afia sua foice e o vento do movimento sopra para longe qualquer possibilidade de quietude. Cabelos longos, negros, muito negros, escorrem - intrusos? - pelos meus ombros sugerindo nunca serem meus. Gestos esboçados; palavras reticentes. O vermelho de uma boca que se recolhe e esconde. Lembranças, são só lembranças, tecido de brisas que me cobre feito lençol.
O que não fiz, o que deixei de fazer por preferir sonhar? Dormiria se tivesse passado dos esboços? Dormiria se trocasse as reticências por uma exaltada exclamação? Talvez dormisse hoje, talvez amanhã, quem sabe algumas semanas! Mas depois, passado o princípio de tudo, o desespero voltaria (sempre volta), carregando no lombo o peso de não ter protegido quem nunca será minha. O desespero, esse animal de carga.
Assim me fiz, quieto e amiúde, talhado para a noite, para reviver na noite o que a eternidade e seus dias não me permitiram ter. Tenho a mim, espelho embaçado: chegou-me apenas seu hálito, e isso foi suficiente para que a realidade perdesse totalmente seu sentido.

Nenhum comentário: