"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O resto é a vida*

* F. Pessoa, Cancioneiro [187], v.1

Sangue a banhar um amarelo vivo de primavera morta. Era outono e a ausência do cheiro doce se aliava ao estalar das folhas mortas que caíam para dizê-lo. No chão frio, condizente substrato da manhã muda, jazia um corpo. Branco a reunir todas as cores, repousava na cama sem dossel que a natureza preparara. Salpicadas de sangue as folhas insistiam em manter o silêncio, em guardar o espanto da vida que o sangue morto lhes imprime.
Não haviam pássaros. Criatura alguma se lembrou de entoar um hino àquela que partia não se sabe para onde, nem se realmente partia. O que disse? Não, não posso afirmar que ninguém se lembrou, talvez o silêncio fora necessário: a natureza despedia-se de uma ninfa que se sonhou mulher, e não se chora por verdadeiros deuses. Fato é que ali estava, como uma praia, o corpo de areia branca, fina, a se dizer delgado num mar de sangue. Minuto sem vida, tempo sem espaço. Como num transe ritual os cabelos iam e vinham a dobrarem-se uns sobre os outros, às fórmulas místicas da brisa fria que os embalava: filhos mortos de pagã inexistente.
De vagar, como se não quisesse acordar aquela que talvez só dormia, aurora, a de róseos dedos, já lhe afagava a fronte, cobria seu corpo nu com os tímidos raios a nascer. Sim, era já o cortejo fúnebre que Apolo enviara: aproximavam-se seus filhos a envolver o corpo inteiro de um amarelo dourado [...]. A Terra dava-lhe o leito, frio como o corpo, e o Céu fazia-se-lhe do dossel que não tinha. Alma dos dias que não vêm, agora visitas o Inferno, e pergunto-me se levaste o óbulo ao barqueiro que te espera. Será que te espera? Pode estar em outra parte, cansado de esperar a todos, a ser ele também esperado, como o findar de antigas tradições. O Inferno há de ser frio, e os raios que te cobrem lá não te chegarão. Tens medo? Queres voltar? Não há volta. Paira sobre ti, fantasma de ti mesma, que a terra há de cobrir-te e beber-te o sangue. Amanhã já ninguém lembrará de ti e o lugar onde agora repousas não será mais que outra terra qualquer.
Serena. Linda. De que te serviram beleza e serenidade se iria morrer? O que levaste contigo para além do que não levaste? Apenas sei o que vejo: um corpo novo a apodrecer, o sangue que já coagula, os cabelos que dançam e a moldura natural que envolve tudo isto. Não me importa de onde vem o sangue: morreste. Interessa-me a imagem, e a sensação falsa de ver uma deusa que se perde.

Carta*

*s/d

Estimado Sr. Luiz Antônio Montello,

Admito ter ficado surpreendido com a carta que me chegou às mãos. Primeiramente, gostaria de elogiar a sua iniciativa em organizar algo de tal importância, com os fins dignos e honrados de resgatar as antigas tradições e velar por uma erudição há muito perdida; seus esforços demonstram seriedade e coerência para com o assunto. Devo apontar, no entanto, alguns obstáculos.
Gerou-me algumas especulações filosóficas o tema que me propôs. A idéia de que existem vários caminhos, várias rotas que levam a um mesmo local, a uma única verdade, não confere com o caráter anárquico e multifacetado do meu ser. Acredito na multiplicidade, nos valores relativos, nos indeterminismos. Creio que a verdade é um processo, e, nesse processo, aquilo que era verdade muitas vezes se converte em mentira. Haveria uma transubstanciação naquilo que é o objeto de nosso assunto? A verdade que se torna mentira perde em essência? Ou sempre foi e será a mesmíssima coisa e tudo não passa de nomes que tão apressada e ignorantemente conferimos às coisas? Não existe verdade, existe apenas a coisa que adjetivamos como tal em determinado momento. Existe, sim, um caminho.
O caminho é tão variado como o número de andarilhos que o queiram percorrer: enquanto o eremita abdica de tudo e encontra o sublime na contemplação de um deserto escaldante, por frinchas na pedra que toma por morada, o bêbado sujo da esquina próxima é capaz de trilhar perfeitamente por sua promiscuidade e vício e ter a contemplação do sublime. Não me compreenda mal, pois não estou a afirmar que o eremita e o bêbado chegam ao Sublime, pois nego sua existência. Chegam ao sublime, cada um à sua maneira, e é impossível comunicá-lo (a arte apenas nos dá um vislumbre do sublime de cada um).
Sr. Montello, é preciso chegar às portas do Eu, penetrar o máximo possível na introspecção e descobrir cada um os meios para a absorção da vida (a contemplação do sublime não serve mais que para isto). Levantemos da cadeira, imprimamos às nossas pernas incertos passos até a janela defronte e por esse vidro sujo, em meio ao caos dos passantes em baixo, assustemo-nos pela primeira vez com olhos sem donos a nos fitar. Quando descobrirmos ser os nossos, já então será tarde para que voltemos: entramos na vida, compactuamos com ela, e o preço, a cada um caberá o seu, é o não saber nunca quem somos nós. A dúvida é o único prêmio que a vida nos concede.

sábado, 10 de julho de 2010

Idéias postas sob o crivo do álcool

O ideal estético caiu por terra. Os versos hoje forçados nada mais são que fingimentos, mentiras que escondem a deficiência técnica que o Romantismo fez imperar sob o livre pomo do sentir. Foram-se com os últimos poetas os elementos que regulavam a nobreza da arte poética. Na poesia atual, basta que ponhamos aqui ou ali algumas palavras em itálico, mediadas por pontos ou pausas maiores, para que qualquer escrito tresloucado se diga “arte”. Com uma tal falta de literatura como há hoje, o que mais pode o homem de gênio senão criar seus próprios amigos literários, sua literatura de muitos em si mesmo (parafraseio toscamente Pessoa)? Decadentes! Hölderlin vomitaria sobre esse vômito que nos é impingido, tremeria de ódio contemplando a estirpe da qual é pai.
O literato atual deve fazer do álcool seu único amigo literato, fazer desse consumo sua higiene básica, seu dia-a-dia expositivo da literatura. Encontrará somente em si mesmo a única alma que comungará de seus versos, e, ainda assim, ébria. Quantos são os que conservam a fiel arquitetura do fazer? Em que nicho de ninfas a poiesis se escondeu? Se Platão expulsara da sua idealizada pólis os poetas de então, ainda que coroados com mirto e oferendas outras, o que fazer desses cretinos que subvertem a quintessência que é a arte poética?! Para o Inferno mandá-los? Não, nem para o Inferno! Matam a cada palavra sublinhada, escondida num não-dizer, tudo o que deveria ir além de Homero e Milton! Não, não se pode conviver, porque não se pode aceitar.
Superficialidades, insuficiência transcritiva... é contra isto que me oponho.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Dracônico

A noite escura chega e quer me consumir.
O tédio invade meu corpo debilitado.
Do outro lado de tudo a Morte me sorri;
Do outro lado de nada o Sonho fracassado.
------ A angústia pobre, meu desvelo vão,

------ Mostra que tenho ainda coração,
Ou os destroços que dele restam. Amado
Nunca foi, e aos poucos já não sabe sentir
O que outros sentem. As pessoas do passado
Hoje destroem-no, como amanhã. Fingir

Estar bem já não consigo mais. Vou sair,
Arrancarei do peito o coração lesado
E não deixarei nunca mais alguém o abrir.
Viverei sempre só, sozinho e ostracizado,
------ À parte dessa civilização

------ Que mata e fede em alucinação,
Que zomba em cantigas de seus escravizados.
Os desertos me pertencem! quero sumir,
Gritar a Deus a morte dos alucinados!
Irei sozinho para não mais me ferir.

Ah, como é simples, como é fácil denegrir
O tolo coração humano aluviado!
Disperso, confuso, sem ter para onde ir,
Plebeu das massas tristemente renegado.
------ Já não sou humano. Sou um dragão.

Minhas asas tocam a fealdade infernal
De astros que giram em louco espaço noturno;
De minha boca saem grunhidos de animal,
------ Dos meus olhos o desejo de morte.
Já ninguém pode comigo, Dragão Soturno,
Com meu orgulho, vaidade, querer mal
A todos os que são felizes, que têm sorte,
------ Opostos de um dragão vil, taciturno!

Eu berro e grito por ermos campos vazios,
Gozo a morte de tudo, da humanidade,
Sinto o calor desses malditos corpos frios
Que encontro vagando, podres, pela cidade!
------ Entôo a bela e fúnebre canção,

------ Dos que combatem sem qualquer razão,
Pela maravilhosa e única verdade.
Em nome da desumanidade que crio
Grito forte com todo o peito e grande alarde
A raivosa confusão com a qual procrio

Sedento império de espectros a que me alio!
E assim me faço, Dragão-deus-da-Mortandade!,
Sem o menor medo perante o desafio
De ser rei de homens desumanos, sem vontade
------ Contrária que não acabe um dragão.

sábado, 3 de julho de 2010

Errata

I

Vem me falar de erros?
Pro inferno com os erros!
“Reparar os erros...”
Arre! Erros se reparam?
Erros se erram!
Faça uma errata.
Nada de erros!

II

Primeiro,
Vem me tirar do meu desassossego sossegado,
Me tira a liberdade, a identidade, o conhecimento de mim mesmo.
Depois vem me falar de erros!?
Essa tua podridão mental me exaspera!
E se eu colocasse tua cabeça num torno
E apertasse! apertasse!! apertasse!!!?
Aí, talvez, seria erro...
... ou a melhor coisa que já fiz:
Ter que catar teus miolos no chão,
Procurar os olhos que saltaram das órbitas,
Até desembaraçaria os cabelos da massa cinzenta apertada!
E logo os cabelos! Ironia...
O sangue escorrendo a cântaros da tua fronte,
Eu guardando-o num pequeno balde
amarelo!
Vendo-o coagular.
O ruim é o prelúdio: gritos.
E eu odeio tua voz! Me tira a concentração,

desencaminha
-me.

Poderia te amordaçar, ou melhor:
Arrancar-te-ia os lábios com os dentes,
Depois te rasgaria a língua
e sugaria o sangue dela...

... Silêncio.

E então:

O TORNO!

O forno e você a assar,
Exalando tua putrefação mental.
Me guiando no escuro por esse miasma alegre
talvez chegasse a mim mesmo.
Retiraria teu corpo esquartejado, queimado,
Providenciaria o mais belo funeral:
Haveria música:

“É tão estranho...”

E teu fantasma dançaria largamente!
Você adorava essa música quando viva,
Por que não depois de morta?
Encher-te-ia de moedas,
Para me certificar do trabalho do barqueiro,
de modo que não haja volta!
É, não volte! Nem deverias ter chegado...
Isso não quer dizer que quero que vás.
Fica! Mas não volte!
Cavaria 21 palmos de terra,
Jogaria 50 mãos de lama
sobre o que sobrou do teu rosto.
Sobre tua campa desenharia o sol,
Com giz, todos os dias,
tijolo de construção...
Por fim, ergueria eu mesmo a tua lápide
Vagabunda
E nela gravaria um irônico epitáfio:
Uma errata, que nem sei o conteúdo.

Sou louco, louco, louco!
Estou louco!
E da minha loucura brota o pecado
daquele que renuncia.

Com isso não quero dizer que não erro,
Mas que não há erros a serem corrigidos.

III

Isso poderia ser uma ode, se não fosse uma errata;
Poderia ser uma dissertação, se não fosse uma errata;
Poderia ser uma carta, não fosse uma errata;
E nem poesia chega a ser, pelo incomensurável fato de
ser uma errata
talvez
cheia de erros.

Lobo da estepe

Além do homem que sou
há um menino, que bem o sei.
Não o conheço; o vi apenas.
Vejo-o às vezes entre a massa esparsa da bruma.
Mas você o conhece, você o sabe, você o desperta,
rompe a mortalha gasta desse lobo cansado de vadiar pelas estepes,
procurando por algo que não sabe o que é.
É então que irrompe,
como se fosse rotineiro,
essa criança alegre que vive em mim,
asfixiada por asmática sordidez lupina.
A criança se revela,
me revela,
e ri do meu próprio embaraço,
da minha timidez,
do meu não-saber-ser-com-os-outros.
Com ela você ri, e juntos,
o menino que há em mim e a mulher que me olha de frente,
derrubam toda essa alcatéia,
toda a verdade lupina na qual me suponho.

Nesses momentos felizes em que me encabulo,
não me resta muito a fazer, não resta nada a fazer
a esse lobo solitário que vive rosnando e arreganhando os dentes
ao primeiro que atravessar seu território,
sua fronteira incólume e inexpugnável.
Senta, como um cão,
e observa menino e mulher brincarem.

Você se revela, eu me revelo,
e há sempre entre nós algo subentendido,
que não precisa se revelar – pois o sabemos.
Está em nós e em toda a parte,
não adianta fugir, evitar o meu olhar,
porque o que tão bem o sabemos
paira no ar à distância que há entre nós.

Aos poucos o lobo vence,
se mostra e arranha e rasga e quer sair!
O menino sabe que a hora é de ir,
a noite é dos lobos e é escuro lá fora!
É melhor que vá e desapareça,
antes que algo não termine bem:
o lobo é sarcástico, rude, vil!
O lobo é o que não se deveria ser!
Acima de tudo, não com você:
bucolismo cativante que se perde em vôos admiráveis!
Mas ao lobo só interessa sangue.

O menino se despede,
vai-se antes que o lobo surja.
Você fica, intocável e altiva... não queria deixá-la!
Por mim voltava e contigo passava a noite:
ainda que nada falássemos,
que nada fizéssemos,
ainda assim ficaria contigo,
cada um sonhando o seu sonho,
sentindo aquilo que é.
Sonhando talvez o mesmo sonho,
sentindo talvez a mesma coisa.
Calados ainda seríamos.

Mas sei que não posso,
que se o fizesse a feriria.

Visto outra vez a mortalha,
escondo nela o menino,
e no escuro,
qual bicho-do-mato,
volto para casa cismando comigo mesmo.
Remôo alguns versos para alguma poesia,
e volto solitário,
lobo da estepe,
pensando no que deixei, no que deixo
e no que deixarei de viver
para sonhar.
E no breve caminho da estrada
assim me construo, oniricamente,
para depois perder esse mesmo sonho
na imensa solidão da estepe sem fim.

Febre e Noite

Se em noites me vem visitar Nergal
Em seu manto de mortes e terrores,
Quero que me venha em forma abissal
Num corcel negro a destilar odores.

Venha este Rei dos Infernos de Outrora
Fazer de mim seu escravo dolente!
Torpe e sequioso de luz e aurora,
Beijaria o chão seco em cinza quente.

No sarcófago a me prostituir
Mil flores negras em cordões de angústia,
Medo em cadeados p'ra eu não fugir!

E se me valer de qualquer astúcia,
Me afogue e banhe num rio de dor,
Na chaga em pus do meu Sonho sem cor.

Devaneios libertinos

Bêbado. Bêbado como sempre tenho sido, bêbado como sempre hei de ser.
Qualquer contato comigo resultará em terror. Meterei o medo em sua vida como o libertino se introduz na meretriz. Não quero lamentos; não quero chieiras: a menor recusa será punida pela força que o peso da minha mão permite. Não desejo sua simpatia, tampouco seu consentimento.
Sou o grito rouco de uma consciência noturna, sou o desespero das mazelas do dia, sou a angústia da própria existência.
Acordo incapaz para o dia.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O Príncipe

Vago entre o Céu e o Inferno,
hóspede da Casa do Degredo,
onde todo dia é dia de guerra
e cada batalha cospe a ausência do meu exílio.

A maldição do tempo cai sobre o meu corpo,
a noite vem marcar a minha face,
extingue-se de olhos cansados a última chama.

Além, o mar inexistente insiste
a me fazer boiar em seu rumor,
misturar minha espuma ao seu suor,
fazer de mim sua própria dor.
E deuses maiores não morrem,
e homens dançam em barcos.
Tempestades, tormentas, ventos e cortes
rompem a amurada daquilo que fui.

Cai, ó Príncipe da Ilusão!
Aceita o teu destino!

Um réquiem distante conferirá recato à noite
e o esvanecer do tempo ser-te-á nulo,
deitado no esquife pobre onde bóiam teus sonhos.

Vai-te, ó Príncipe,
e procura tua verdade!
Ou te afogues no mar eterno do teu mundo
como a criança boba que inventou
a verdade horrível de um quarto escuro.

Deslizamentos

Como a chuva que escorre e molha o telhado
lanço minha dissolução ao concreto cinza da vida.
Como a gota d'água suja -
o pó do telhado! -
que cai e não encontra a poça,
por a água ter já se escoado,
resigno-me a não ser mais natureza.

Ah, o ódio de tudo
e o cansaço desse ódio
e o cansaço do cansaço ser só isso
e não ter o que fazer com ele!

Corre, chuva, nos telhados!
Corre, água cinzenta suja!
Corre e se vá perder no vazio,
deslizante única num chão liso,
que não lava a face de ninguém.
Vá, ó chuva da minha alma
e que o vento frio desta hora
não anuncie aquele sol falso
que por entre o céu carregado insiste,
tragicamente,
a me querer fazer aparecer.

Bar

Numa noite sem cessar eu procurava
De mãos frias, vazias, penitentes,
Em garrafas indecorosas que se uniam

Ao mistério incompreensível de cada coisa,
Uma coisa maior que em vão dissesse
A própria coisa perdida e interrogada.

E como um surto negro e inconseqüente
Se apossasse do meu ser ensimesmado,
Me afundei no mar maior de uma cadeira

Que sozinha havia, inconsolada,
Sem chegar à resposta gratuita
Que acalentasse esse meu ego delinqüente.

Submerso assim em devaneios
Me levei inconsciente a outras plagas,
Sonhos menores de um sempre mesmo sonho,

Incapaz da concretude que eu queria.
Adormeci meu corpo nu cansado
Num carrossel atroz de mil volteios

A espera de uma luz que em claridade
Me retirasse a estátua de mim mesmo,
Esquecido e de tudo renegado.

Um trajeto mudo e áspero me emudecera
Em que sob o halo da manhã chegada
Apresentou-me o Além-da-realidade.

Tudo o que eu julgava desconexo
Mostrou-se claro na verdade que se grita.
Mas a palavra felizmente debruada

Não permite o caminho então reverso
E a noite novamente foi caindo
Num gesto hermético e a si inverso.

Nota

As tentativas literárias postadas até aqui são, talvez com uma única exceção, referentes à idade máxima dos 18 anos do autor. São textos em sua maioria escritos entre os 16 e 18 anos, e é justamente em função da tenra idade em que foram escritos que o blog leva o adolescente título de "Lobisomem Juvenil".
A partir desta data serão postados textos mais novos em meio aos antigos. Não se alterará o título do blog, pois o "lobisomem juvenil" que havia antes ainda subsiste, um intricado lobo da estepe, um rebento último da linhagem de Harry Haller. O homem sempre foi e será o lobo de si mesmo; não me contextualizem.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Tempo

Rente à casa da minha infância
corria um rio.
A casa era de madeira e vida a escorrer,
o rio não sei de que era.
Saía de mãos dadas à alma que não era minha
e observava-me a correr no campo.
As flores lançavam-me perfumes de outros tempos,
balançando-me em músicas antigas
que ninfas divertidas insistiam em cantar.

Sempre que voltava à casinha da minha infância
não era a ela que voltava,
pois já não estava lá.
Havia sempre só o rio
a se fingir a passear.
Eu o seguia, como se segue uma vida sem propósitos,
e encontrava um porto, uma caverna, uma gruta...
E fazia o que quer que achasse de casinha,
e fazia dos meus muitos anos a minha infância.
E assim fui sendo,
caçador de sonhos que fazia meus,
perdendo a cada dia a esperança de ser outro.
Só o rio continuava,
deus úmido indiferente à minha passagem.

Ano Novo Chinês (carta em verso)

Tentei ajudar,
mas percebo que quem precisa de ajuda
sou eu.
Não sei o que fazer:
estou perdido entre os sonhos que criei,
todos ruínas, poeira, fracasso
do meu próprio existir.
Como sair daqui? O que fazer?
E, do fundo de uma garganta condenada,
a resposta sempre igual:
Eu não sei!

Tanto dei as mãos aos outros
que agora já as não tenho mais.
Quem afagará a minha face?
Quem alisará os meus cabelos?
Quem me encontrará em meus olhos?
E quem apagará a lembrança do que foi?
Ninguém, ninguém fará nada.
Não haverá a esperança de um novo dia com o sol posto,
apenas o sol posto.
Quero chorar e gritar.

Os ratos saem para a virada do ano,
que já está de cabeça para baixo;
os ratos roem a roupa do rei de Roma.
O mito reverbera em pêlos.
Os ratos são meus irmãos,
pertenço a eles.
Preciso de ajuda,
mas não preciso de ninguém.

Períodos

Opressão.
Ânsia de verso, cor ou sol.
Paisagens deslumbrantes que se afiguram onde nunca sairão.
Lembranças de páginas que não disseram nada,
e de outras que disseram tudo,
não dizendo nada também.
Vontades; desejos; lembranças!
Nostálgico e incandescente passado,
que já passou;
presente desprezível e desprezado,
ausência de substância;
Futuro,
medo de sabê-lo,
desejo de adiá-lo.
Imensa vontade de inexistir;
preguiça de ser eu.

A rua que tantas vezes vejo,
as pessoas com as quais sou obrigado a conviver,
os pensamentos
- o moralismo cristão! -
que me forçam a escutar,
e as situações geradas
por esse encadeamento de elementos sinistros!

Compreender o que eu não compreendo
não depende da compreensão de ninguém.

[Sou uma sombra...]

Sou uma sombra, ou, antes,
um projeto dela,
que nem a sombra chego a ser.
Sou a fumaça das fábricas, dos escapes dos automóveis,
do cigarro que mulheres fumam.
Sou, talvez não a fumaça,
mas a dispersão dela,
pois a fumaça realmente dita não passa de metáfora em busca
de um conceito que não sei expressar.
Sim, sou a dispersão.
A agudez do som que ninguém ouviu,
O cinza do dia chuvoso em que ninguém saiu de casa.
Sou tudo o que é apenas por obrigação de o ser;
Sou tudo o que é e passa sem contemplação;
Sou tudo e a nebulosidade estática de ser tudo:
A ataraxia de um deus morto
e a revolta de um morto-vivo.

domingo, 11 de abril de 2010

Do Livro do Desassossego, o sossego que não tenho*

* trechos escritos a partir de reflexões advindas da leitura deste íntimo diário de Bernardo Soares


“Deus é o existirmos e isto não ser tudo.”

Procuro um deus plebeu e um plebeu que não seja deus. Essa busca se me chega em noites insones, manhãs angustiantes e tardes, como esta, tediosas. Sei que tal coisa não se pode encontrar, mas me consolo em sonhá-la. Assim, crio deuses do degredo humano e homens menos arrogantes que um deus. Me faço outro na imensidade única de ser tudo: nesses momentos, sou o Deus Criador e moldo o mundo à minha imagem e semelhança. Faço com que tudo me convenha, e essa animosidade de tudo faz-me feliz a minutos.
Há o momento, porém, que terei que acordar, descer da escada alta do sonho e saber-me eu, ridículo e infeliz. Eu, o fraco, o estranho, o covarde, o vil, gasto os meus dias criando mundos e me achando Deus? Tenho pena de mim! Da minha ignorância e covardia ao viver, do meu medo da convivência. Sou como o mendigo que não venceu o orgulho para pedir uma esmola e preferiu, por ser menor o incômodo, morrer de fome a ter um pão seco que engula. Se pedisse, talvez nem um gole d’água lhe dessem. É um pessimismo crônico, mas não sei como me livrar dele e tudo vejo por esta ótica. Quem se faz presente quando grito, se gritasse? Quem me estenderia a mão, se eu a procurasse? Quem faria por mim qualquer coisa, destituído do sobretudo da obrigação ou da casaca pesada do dever moral? Quem me ajudaria por mim? Não encontro, nem encontrarei quem o faça. Se alguém vem aos meus gritos, é só para que me cale; se alguém me dá a mão, é porque incomoda vê-la estendida, como um trapo imundo. Tudo o que se me fazem fazem apenas até onde alcança a dimensão do senso estético. Tudo é apenas um esforço para que a normalidade reine, o ser estranho que invade a casa dos homens é um estorvo, uma monstruosidade que deve ser suprimida.
Sozinho, choro e rio do que faço, das situações em que essa vida adversa a mim me coloca. Eu, tão despreparado para o convívio, sou obrigado a conviver da pior maneira e ainda ter a consciência disso. Se fazem ausentes todas as cartas do baralho e eu me vejo um coringa fracassado por não lhe haver baralho. Rio de mim mesmo, da minha roupa de palhaço e dos meus modos tão pouco convencionais, e me creio pobre e débil. À certa altura, pergunto-me do fundo mórbido do interior de mim: há alguém como eu no mundo? Há quem padeça do desgosto e da ridiculeza de não saber agir? E me calo sem respostas. Encontro em Bernardo Soares, lisboeta da Baixa, figura de livro, uma alma, senão igual, parecida com a minha, e leio nele as minhas angústias. A sua voz, aparentemente tão pouca coisa, encarnou, será? a substância de milhares de vozes que se calam? Nem eu, nem ele, podemos saber. Ainda que ele tenha sido sozinho, o transcorrer de mais de meio século trouxe-lhe uma alma irmã da sua, em angústia e depressão constantes que alimentam essa capacidade incrível de se fazer sofrer.

“Amar-me é ter pena de mim.”

Às vezes pareço fazer-me coitado. Quando tomo consciência disso, mais coitado me sinto, por saber que coitado o sou e não só o pareço. Preencho com pena a nulidade do meu vazio interior, e concedo a mim o amor que me não dão. Não sei se de amor se trata, pois não o suspeito de forma alguma. Mas não me importa saber, não me interessa que saiba. Sinto-me, e isto basta para que sofra.
Se há quem me sinta, sente-me com pena. Ama-me? Como posso eu saber, se não sei se sentem, se não sei como amam? Nada posso saber, nem quero saber, exceto o saber único de saber-me nada.
Sei das pessoas do meu convívio forçado como aparentam-me ser, e me pergunto se também elas me tomam como pareço que sou. Fazem-me bem ou mal? E o que deveria ter por bem ou mal? Basta que vejam, e eu existo fora de mim. Me perco, porque não compreendo o que me há de exterior. Pairo, disperso como eu só, entre as múltiplas pessoas do cotidiano. Me altero para o convívio.
Encaram-me com pena, pena e comiseração. Questionam minha presença para sentirem-se bem consigo mesmos, para que façam a boa ação do dia. Pensando ajudar-me, criam-me um imenso desconforto e me querem, não o pano velho que sou, mas o linho que por vezes pareço ser. Volto, e sou molambo; o pano podre que se rasga ao toque pungente da criança sem medo. Querem-me não o que sou, desiludem-se e têm pena: pobre diabo que não soube ser!

“Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver.”

Os meus sonhos, que não sei ao certo se são meus, e que apenas suspeito serem sonhos, quase não se mostram fora de mim. Ao menos não padecem do desplante sujo da mácula alheia. Se transbordam de mim, preenchem um quarto vazio que não é o meu, pintam e fazem desse quarto uma semelhança de mim, sem que se perceba que não seja eu.
Os meus sonhos são sonhados apenas para sonhá-los e permanecerem sonhos. Sonhos são impossíveis. Sonhos possíveis são apenas desejos, veleidades que se querem reais. Querer é trair o que se sonha, pois que assim o despimos, o sonho, daquilo que o torna supremo: sua impossibilidade e a infinitude dentro dela. São os sonhos infinitos dentro da impossibilidade de serem reais, pois a fantasia, matéria do sonho, quem faz somos nós, alheios a todo o resto que nos não convém.
Os meus sonhos, quando muito, os ritmo, coloco-lhes cadência, cor, forma, dentro de uma poesia qualquer da vida não vivida que é minha. Não me importa a poesia, como conjectural autor, pois que a tenham quem achar por bem lê-la. Importa-me o sonho que nela vai, que deposito na esperança de que se um dia não houver mais sonhos, podem sonhar, ao lê-la novamente, aquele mesmo sonho. Por isso, o que escrevo não é para que a vida me galardoe por isso, antes, porém, para que eu sobreviva diminuindo o muito que sinto e desse pouco subtraído confirme o tédio de dias vindouros esperado sem qualquer esperança, quando o que existe não me diz nada e o que pode existir também não. Nesses dias, deixarei de ser o profeta que não sou e o historiador sombrio de minhas emoções, deixarei tudo isso para viver um presente falso, baseado em meandros de outrora. Mas sonharei tudo novo, tudo como nunca foi sonhado; ainda que seja o mesmo sonho, sonhá-lo-ei outro por eu já não ser mais eu, senão eu-outro que acabei por ser.

“Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.”

Ao ver o meu reflexo nos azulejos de uma cozinha qualquer, ocorre-me que aquela imagem é outra que não seja eu. Olho-me, àquela imagem, recurvada, arqueada, com a cabeça levemente voltada para baixo e o corpo frágil fazendo a linha fina e deselegante projetar-se perpendicularmente à bancada naqueles mesmo azulejos que me devolvem.
Se aquele desenho desajeitado e débil é o retrato físico do meu corpo, seriam os meus atos, também, desajeitados e débeis, retrato anêmico de minha alma? Esta indagação, que me ocorreu na cozinha enquanto comia, menos por fome que por educação para com quem me preparou o lanche, acompanhou-me até a este quarto emprestado que tenho feito meu. Seriam os meus atos reflexo idêntico do que hermeticamente sou? Pobre de mim, se assim o fosse! Sei a todos eles falsos, fingidos, levemente rebuscados com a ironia com a qual os corôo. A minha alma é velada mesmo para mim, mal a suspeito. Os meus atos são tortos e incapazes de retratar qualquer coisa que não seja ridícula. Os meus atos, quando ajo, não são meus, mas da situação que os fazem; não sou nem a boca por que falam, nem o gesto pelo qual se mostram, sou apenas o movimento muscular inconsciente, acionado por não sei que neurônios dispensáveis, que faz com que o corpo viva e os atos saiam por ele. Quando assim procedo, estou longe, fora daqui e de mim, em galáxias outras e em sistemas solares que a astronomia nunca descobrirá. Nesses momentos me divido: de um lado o eu físico e biológico, de outro o anímico e racional. O primeiro é feito a cada instante, o segundo se faz eternamente e nunca deixa de ser.

“Benditos os que não confiam a vida a ninguém.”

Sim, benditos sejam os que se fazem sem a confiança dar aos que os querem feitos.
Não pertenço a uma multidão, a um grupo ou qualquer outro ajuntamento de gente; pairo sobre o que quer que seja e apenas aparento ser. Ninguém me sabe eu, todos me sabem outro. Tangencialmente vivendo, apenas esbarrando na soleira quando deveria entrar, nunca deposito em outros olhos o espelho de minha alma que são os meus. Moldo-os para que não falem. No entanto, perscruto a essência alheia e julgo, quando realmente quero, encontrar o saber idiota que o outro me quer esconder. Que cada ser se faça segundo a sua própria amargura, pois que a mim também não me vêm ajudar. Sei, porém, que chegada a hora, movido por um altruísmo cristão que me faz ter nojo de mim, sou o primeiro a dar a mão, afagar os cabelos e oferecer a amizade sólida que não me quiseram dar.
Quando as brumas se me fecham o espírito e a tempestade sufoca-me o peito, quando o tédio é corrosivo e a lucidez qualquer coisa que me quer enlouquecer, nesses momentos terríveis estou sozinho, não há nenhuma amizade que me retire a escuridão. Estou sozinho, nu diante a toda maldade que me toma, toda a doença que me mata. Ao meu auxílio nenhum ser se dispõe a vir. Os meus espasmos sou eu que limpo, o meu sangue sou eu que vejo, a minha carne sou eu que rasgo; sozinho. E se acaso o espírito me quiser abandonar, não haverão flores nem velas, haverá apenas o choro de quem nunca esteve ali, haverá somente a compreensão dos ausentes.
Não me confio a ninguém, porque não há em quem confiar. Se sou triste, o mundo não o deixa de ser. Se sou doente, só quero que essa minha doença não se alastre e que o mal da solidão não corroa as vísceras dos que ainda sabem amar.

“Em geral sou uma pessoa com quem os outros simpatizam, com quem simpatizam, mesmo, com um vago e curioso respeito. Mas nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar.”

Eu sou amigo de alguém, ou é esse alguém mais amigo meu que eu dele e simplesmente retribuo por obrigação a mesma amizade? Talvez sequer exista Amizade. O que há é apenas uma confluência de afinidades e interesses mútuos que permitem uma relação de associação com o outro até chegada a hora em que os lucros já não rendem mais.
Se me acusam de triste, não sei do que me acusam. A tristeza está por fora, eu apenas a observo com o escrutínio cético para com os homens. A tristeza invade-me, mas reside em vós. Por vezes, penso que a única pessoa que se possa dizer feliz sou eu, justamente por perceber a tristeza que há no mundo e continuar vivendo, continuar sendo eu, e contribuindo com esta grande e maior tristeza. Triste é existir, ainda que a existência não pareça tristeza.

“A minha vida é como se me batessem com ela.”

O estudo de mim mesmo se me veta mesmo ao fim. Por mais que me esforce, nunca chegarei a resultado nenhum do que sou. Tudo passa pela ótica falsa da imprecisão e do falso entendimento. Sou fugidio mesmo para mim.
Outorgo a um qualquer desvão psicológico meu essa atenção insalubre que me concedo; passo-a a outros inexistentes. Há quem se faça em linhas tortas e há os que se fazem tortos em linhas certas. Não sei aonde chego quando não chego a lugar nenhum diferente do qual saí. Por isso, não sei para que saio. Quando volto, sinto a mágoa mental da intelectualidade fracassada e o meu orgulho misto de desespero reverbera pelas paredes do quarto sem vida seu canto infantil. Eu calo e escuto esse canto gelado que me envolve. Quantos deuses mato!
Não me compreendo e não sei para que vivo, se vivo na incompreensão daquilo que sou. Sofro com todo o meu eu exterior, colado a mim com o siamês que me espanca. É ele a vida que me bate, a minha vida que me bate. E eu sou o desvegetar inútil de uma hora triste.

quinta-feira, 18 de março de 2010

[Entre o perjúrio...]

Entre o perjúrio e o altar
mora um anjo que não sei quem é.
Não posso lhe descrever as asas,
a face, os olhos...
Não sei dele para além de que existe:
no entremente de uma dualidade una.
Esse anjo que existe mas não se sabe
Senta e espera, por não sei quê.
Alto é seu perjuro,
blasfemo seu altar.
Um roçagar de asas veladas arranha a noite.
A aurora se avizinha
e ele fica na rua,
até que o tempo e a última estrela
anunciam sua solidão.
(Anjos não dormem.)

[Quando Deus...]

Quando Deus mentia
eu era menos triste.
Ele dizia,
ou diziam por ele,
que um dia eu seria gente,
que um dia eu seria humano,
teria um grande amor
e vida de venturas!

Conheci todas elas,
essas mentiras divinas
contadas por homens.
Como conheci,
perdi.

Hoje não sonho mais.
Deus é uma brincadeira
dos tempos de infância,
perdida na ignorância
do menino vadio.
E eu sou triste.

[De manhã...]

De manhã é péssimo acordar
e saber de um novo dia que
por fim
Não será novo:
as mesmas coisas, as mesmas pessoas, o mesmo tédio.
Os mesmos sentimentos implosivos que preenchem
o vácuo de onde se sente.

O vazio... o vazio tem sido eu.

[Não tenho...]

Não tenho ambição,
nem mesmo a mais sadia.
Sou assim, vazio e incoercível.
Não trago o leve cheiro de aurora
em que outros conhecem paz.
Existo. E por momentos basta.
Mas momentos há em que queria ser tudo,
e outros em que não queria ser nada.

A urbe pobre

Rocinha imunda,
Fim-de-mundo vazio
que me tem.
Em que buraco Deus jogou minha vida?
Em que beco imundo de tuas ruas ficou perdida a minha alma?
Elegia de fracassos,
reino de idiota burguesia!
Por que existes?
Que te percas, que te afogues
no torvelinho de tua lama podre!
Morta, não exales odor algum,
pois a lembrança de tua existência ainda macularia
o nojo das coisas.

Paraíso fétido,
de imundícies hostis e hordas bárbaras
que se comem ao almoço.
Dobre tuas esquinas
e esconda-as nos bolsos.
Que os edifícios caiam
e que a poeira levantada encubra o sol
por quarenta séculos!
Que não chegue nenhum feixe de luz
à fealdade de tua face!
Perca a esperança de novos dias,
rocinha imunda;
Perca a vontade de mudar,
paraíso fétido.

Pois para mim sempre serás
a barriga horrível da qual saí.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Ateísmo de parede...

O ateísmo é a religião final. Agarramo-nos ao Nada para fugir do terror e do medo que nos causam o absurdo da vida. Nós, ateus, vivemos a noite eterna dos tempos em que não há som diferente dos gritos de Sísifo: tudo é Trevas, Desespero e Angústia. Não existe qualquer motivo para vivermos, a vida é sem sentido e sem propósito, e não há destroços flutuantes onde se apoiar no imenso mar de sargaço que é a passagem excruciante dos dias. Somos o dejeto de todos os sistemas e explicações, somos o pó sujo e impróprio da fabricação de deuses, somos o sacrifício inútil, a libação passada em branco. Crianças órfãs que somos, procuramos beber de um trago o licor amargo do Esquecimento. Gritamos, no quarto de despejos que nos serve de vida, com medo do escuro, e não há criatura que repouse a mão sobre nossa fronte e nos embale numa música branda e calma. Nosso grito se perde no vazio e quase nos arrependemos de ter gritado: temor dilacerante que vá a acordar novos pesadelos. Precisamos esquecer, temos que esquecer ou a vida se nos converte em tormento e aflição. Estamos perdidos na Noite, e um bafo frio de morte vem percorrer os nossos rostos.

O convívio

E os meus tesouros,
escondidos entre a areia branca dos desertos
e um lodaçal de mangues ensombrados,
findaram.

Retiraram-me a última moeda,
extinguiram-me,
não como o ladrão absconso da noite quieta
mas como a horda bárbara
que marcha, sem regra,
com o alarido que lhe é próprio.

Sobrou-me, não mais,
apenas a memória
do barulho que me fizeram
ao de mim aproximarem-se, gritantes,
estes bárbaros de que vos falo.
Restou-me, de todos meus galeões,
apenas a face, fugidia em minha mente
mas vincada,
daqueles que me despiram e me entregaram,
sem qualquer sensibilidade.
Arrancaram-me tudo,
descreram-me de mim como me havia feito crer.

E por entre os destroços do latrocínio,
sob os indignos escombros do que fui,
ainda pode-se enxergar,
emergindo do areal branco
ou do lamacento mangue que camufla,
o molambo gasto e sujo de minha alma:
signo maior de humanidade.

Dever-ser

É meu dever só andar por linhas tortas.
É a prática perfeita do meu caminhar contínuo,
dos meus passos incertos,
navegar à deriva por entre mares que não são meus;
É a perfeição prática de nunca escolher nada.
Ainda mais que dever,
é o ideal de toda uma vida,
pois é assim que passo o tempo que tenho de passar!

Ah, mas quem me dera ausentar-me disto!
Quem me dera incorrer no erro de tantos
e navegar sem rumo, com a certeza de que é aquele o caminho!
Quem me dera ignorar-me!

Não posso, pois que tenho como único poder
perder-me.

O meu propósito,
se há propósito,
é escrever, em sonho,
os sonhos que não vivo.
Pôr em páginas que ninguém lerá,
não existentes, perfeitas por isto,
o que ponho na alma... e calo.
Se um dia o fizesse,
já então seria santa a minha vida;
Se o fizesse,
já não seria em vão meu sofrimento;
já não seria angústia, nem perda, nem nada,
o meu caminho.

[Escrevo...]

Escrevo, e isto basta.
Desfiz-me dos farrapos de vida que trazia.
Desfiz os desejos, as vontades,
as relações com o que não me relacionei;
desfiz a vida e desfiei-a em luto.

Agora já não me importa o que fiz,
por o que me tomam,
quem dizem eu ser.
Invento a vida da minha própria vida
e minhas vivências são absurdas
entre meus sonhos de papéis.

Estou sozinho, sozinho e feliz,
por saber que invento a vida,
e não que ela inventa a mim.

“13 vezes anteontem”?

O erro que complementa a fuga
E foge para mim em noite álacre,
Num deserto de fogo faz
A carícia desdita do beijo que não me deram.
E eu me perco em minhas mazelas;
(O medo de viver me surpreende!)
E percebo que mais ninguém entende
Nossas vidas e o porquê delas.