"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

sábado, 3 de julho de 2010

Lobo da estepe

Além do homem que sou
há um menino, que bem o sei.
Não o conheço; o vi apenas.
Vejo-o às vezes entre a massa esparsa da bruma.
Mas você o conhece, você o sabe, você o desperta,
rompe a mortalha gasta desse lobo cansado de vadiar pelas estepes,
procurando por algo que não sabe o que é.
É então que irrompe,
como se fosse rotineiro,
essa criança alegre que vive em mim,
asfixiada por asmática sordidez lupina.
A criança se revela,
me revela,
e ri do meu próprio embaraço,
da minha timidez,
do meu não-saber-ser-com-os-outros.
Com ela você ri, e juntos,
o menino que há em mim e a mulher que me olha de frente,
derrubam toda essa alcatéia,
toda a verdade lupina na qual me suponho.

Nesses momentos felizes em que me encabulo,
não me resta muito a fazer, não resta nada a fazer
a esse lobo solitário que vive rosnando e arreganhando os dentes
ao primeiro que atravessar seu território,
sua fronteira incólume e inexpugnável.
Senta, como um cão,
e observa menino e mulher brincarem.

Você se revela, eu me revelo,
e há sempre entre nós algo subentendido,
que não precisa se revelar – pois o sabemos.
Está em nós e em toda a parte,
não adianta fugir, evitar o meu olhar,
porque o que tão bem o sabemos
paira no ar à distância que há entre nós.

Aos poucos o lobo vence,
se mostra e arranha e rasga e quer sair!
O menino sabe que a hora é de ir,
a noite é dos lobos e é escuro lá fora!
É melhor que vá e desapareça,
antes que algo não termine bem:
o lobo é sarcástico, rude, vil!
O lobo é o que não se deveria ser!
Acima de tudo, não com você:
bucolismo cativante que se perde em vôos admiráveis!
Mas ao lobo só interessa sangue.

O menino se despede,
vai-se antes que o lobo surja.
Você fica, intocável e altiva... não queria deixá-la!
Por mim voltava e contigo passava a noite:
ainda que nada falássemos,
que nada fizéssemos,
ainda assim ficaria contigo,
cada um sonhando o seu sonho,
sentindo aquilo que é.
Sonhando talvez o mesmo sonho,
sentindo talvez a mesma coisa.
Calados ainda seríamos.

Mas sei que não posso,
que se o fizesse a feriria.

Visto outra vez a mortalha,
escondo nela o menino,
e no escuro,
qual bicho-do-mato,
volto para casa cismando comigo mesmo.
Remôo alguns versos para alguma poesia,
e volto solitário,
lobo da estepe,
pensando no que deixei, no que deixo
e no que deixarei de viver
para sonhar.
E no breve caminho da estrada
assim me construo, oniricamente,
para depois perder esse mesmo sonho
na imensa solidão da estepe sem fim.

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