"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O resto é a vida*

* F. Pessoa, Cancioneiro [187], v.1

Sangue a banhar um amarelo vivo de primavera morta. Era outono e a ausência do cheiro doce se aliava ao estalar das folhas mortas que caíam para dizê-lo. No chão frio, condizente substrato da manhã muda, jazia um corpo. Branco a reunir todas as cores, repousava na cama sem dossel que a natureza preparara. Salpicadas de sangue as folhas insistiam em manter o silêncio, em guardar o espanto da vida que o sangue morto lhes imprime.
Não haviam pássaros. Criatura alguma se lembrou de entoar um hino àquela que partia não se sabe para onde, nem se realmente partia. O que disse? Não, não posso afirmar que ninguém se lembrou, talvez o silêncio fora necessário: a natureza despedia-se de uma ninfa que se sonhou mulher, e não se chora por verdadeiros deuses. Fato é que ali estava, como uma praia, o corpo de areia branca, fina, a se dizer delgado num mar de sangue. Minuto sem vida, tempo sem espaço. Como num transe ritual os cabelos iam e vinham a dobrarem-se uns sobre os outros, às fórmulas místicas da brisa fria que os embalava: filhos mortos de pagã inexistente.
De vagar, como se não quisesse acordar aquela que talvez só dormia, aurora, a de róseos dedos, já lhe afagava a fronte, cobria seu corpo nu com os tímidos raios a nascer. Sim, era já o cortejo fúnebre que Apolo enviara: aproximavam-se seus filhos a envolver o corpo inteiro de um amarelo dourado [...]. A Terra dava-lhe o leito, frio como o corpo, e o Céu fazia-se-lhe do dossel que não tinha. Alma dos dias que não vêm, agora visitas o Inferno, e pergunto-me se levaste o óbulo ao barqueiro que te espera. Será que te espera? Pode estar em outra parte, cansado de esperar a todos, a ser ele também esperado, como o findar de antigas tradições. O Inferno há de ser frio, e os raios que te cobrem lá não te chegarão. Tens medo? Queres voltar? Não há volta. Paira sobre ti, fantasma de ti mesma, que a terra há de cobrir-te e beber-te o sangue. Amanhã já ninguém lembrará de ti e o lugar onde agora repousas não será mais que outra terra qualquer.
Serena. Linda. De que te serviram beleza e serenidade se iria morrer? O que levaste contigo para além do que não levaste? Apenas sei o que vejo: um corpo novo a apodrecer, o sangue que já coagula, os cabelos que dançam e a moldura natural que envolve tudo isto. Não me importa de onde vem o sangue: morreste. Interessa-me a imagem, e a sensação falsa de ver uma deusa que se perde.

Carta*

*s/d

Estimado Sr. Luiz Antônio Montello,

Admito ter ficado surpreendido com a carta que me chegou às mãos. Primeiramente, gostaria de elogiar a sua iniciativa em organizar algo de tal importância, com os fins dignos e honrados de resgatar as antigas tradições e velar por uma erudição há muito perdida; seus esforços demonstram seriedade e coerência para com o assunto. Devo apontar, no entanto, alguns obstáculos.
Gerou-me algumas especulações filosóficas o tema que me propôs. A idéia de que existem vários caminhos, várias rotas que levam a um mesmo local, a uma única verdade, não confere com o caráter anárquico e multifacetado do meu ser. Acredito na multiplicidade, nos valores relativos, nos indeterminismos. Creio que a verdade é um processo, e, nesse processo, aquilo que era verdade muitas vezes se converte em mentira. Haveria uma transubstanciação naquilo que é o objeto de nosso assunto? A verdade que se torna mentira perde em essência? Ou sempre foi e será a mesmíssima coisa e tudo não passa de nomes que tão apressada e ignorantemente conferimos às coisas? Não existe verdade, existe apenas a coisa que adjetivamos como tal em determinado momento. Existe, sim, um caminho.
O caminho é tão variado como o número de andarilhos que o queiram percorrer: enquanto o eremita abdica de tudo e encontra o sublime na contemplação de um deserto escaldante, por frinchas na pedra que toma por morada, o bêbado sujo da esquina próxima é capaz de trilhar perfeitamente por sua promiscuidade e vício e ter a contemplação do sublime. Não me compreenda mal, pois não estou a afirmar que o eremita e o bêbado chegam ao Sublime, pois nego sua existência. Chegam ao sublime, cada um à sua maneira, e é impossível comunicá-lo (a arte apenas nos dá um vislumbre do sublime de cada um).
Sr. Montello, é preciso chegar às portas do Eu, penetrar o máximo possível na introspecção e descobrir cada um os meios para a absorção da vida (a contemplação do sublime não serve mais que para isto). Levantemos da cadeira, imprimamos às nossas pernas incertos passos até a janela defronte e por esse vidro sujo, em meio ao caos dos passantes em baixo, assustemo-nos pela primeira vez com olhos sem donos a nos fitar. Quando descobrirmos ser os nossos, já então será tarde para que voltemos: entramos na vida, compactuamos com ela, e o preço, a cada um caberá o seu, é o não saber nunca quem somos nós. A dúvida é o único prêmio que a vida nos concede.