"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Carta*

*s/d

Estimado Sr. Luiz Antônio Montello,

Admito ter ficado surpreendido com a carta que me chegou às mãos. Primeiramente, gostaria de elogiar a sua iniciativa em organizar algo de tal importância, com os fins dignos e honrados de resgatar as antigas tradições e velar por uma erudição há muito perdida; seus esforços demonstram seriedade e coerência para com o assunto. Devo apontar, no entanto, alguns obstáculos.
Gerou-me algumas especulações filosóficas o tema que me propôs. A idéia de que existem vários caminhos, várias rotas que levam a um mesmo local, a uma única verdade, não confere com o caráter anárquico e multifacetado do meu ser. Acredito na multiplicidade, nos valores relativos, nos indeterminismos. Creio que a verdade é um processo, e, nesse processo, aquilo que era verdade muitas vezes se converte em mentira. Haveria uma transubstanciação naquilo que é o objeto de nosso assunto? A verdade que se torna mentira perde em essência? Ou sempre foi e será a mesmíssima coisa e tudo não passa de nomes que tão apressada e ignorantemente conferimos às coisas? Não existe verdade, existe apenas a coisa que adjetivamos como tal em determinado momento. Existe, sim, um caminho.
O caminho é tão variado como o número de andarilhos que o queiram percorrer: enquanto o eremita abdica de tudo e encontra o sublime na contemplação de um deserto escaldante, por frinchas na pedra que toma por morada, o bêbado sujo da esquina próxima é capaz de trilhar perfeitamente por sua promiscuidade e vício e ter a contemplação do sublime. Não me compreenda mal, pois não estou a afirmar que o eremita e o bêbado chegam ao Sublime, pois nego sua existência. Chegam ao sublime, cada um à sua maneira, e é impossível comunicá-lo (a arte apenas nos dá um vislumbre do sublime de cada um).
Sr. Montello, é preciso chegar às portas do Eu, penetrar o máximo possível na introspecção e descobrir cada um os meios para a absorção da vida (a contemplação do sublime não serve mais que para isto). Levantemos da cadeira, imprimamos às nossas pernas incertos passos até a janela defronte e por esse vidro sujo, em meio ao caos dos passantes em baixo, assustemo-nos pela primeira vez com olhos sem donos a nos fitar. Quando descobrirmos ser os nossos, já então será tarde para que voltemos: entramos na vida, compactuamos com ela, e o preço, a cada um caberá o seu, é o não saber nunca quem somos nós. A dúvida é o único prêmio que a vida nos concede.

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