"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Tempo

Rente à casa da minha infância
corria um rio.
A casa era de madeira e vida a escorrer,
o rio não sei de que era.
Saía de mãos dadas à alma que não era minha
e observava-me a correr no campo.
As flores lançavam-me perfumes de outros tempos,
balançando-me em músicas antigas
que ninfas divertidas insistiam em cantar.

Sempre que voltava à casinha da minha infância
não era a ela que voltava,
pois já não estava lá.
Havia sempre só o rio
a se fingir a passear.
Eu o seguia, como se segue uma vida sem propósitos,
e encontrava um porto, uma caverna, uma gruta...
E fazia o que quer que achasse de casinha,
e fazia dos meus muitos anos a minha infância.
E assim fui sendo,
caçador de sonhos que fazia meus,
perdendo a cada dia a esperança de ser outro.
Só o rio continuava,
deus úmido indiferente à minha passagem.

Ano Novo Chinês (carta em verso)

Tentei ajudar,
mas percebo que quem precisa de ajuda
sou eu.
Não sei o que fazer:
estou perdido entre os sonhos que criei,
todos ruínas, poeira, fracasso
do meu próprio existir.
Como sair daqui? O que fazer?
E, do fundo de uma garganta condenada,
a resposta sempre igual:
Eu não sei!

Tanto dei as mãos aos outros
que agora já as não tenho mais.
Quem afagará a minha face?
Quem alisará os meus cabelos?
Quem me encontrará em meus olhos?
E quem apagará a lembrança do que foi?
Ninguém, ninguém fará nada.
Não haverá a esperança de um novo dia com o sol posto,
apenas o sol posto.
Quero chorar e gritar.

Os ratos saem para a virada do ano,
que já está de cabeça para baixo;
os ratos roem a roupa do rei de Roma.
O mito reverbera em pêlos.
Os ratos são meus irmãos,
pertenço a eles.
Preciso de ajuda,
mas não preciso de ninguém.

Períodos

Opressão.
Ânsia de verso, cor ou sol.
Paisagens deslumbrantes que se afiguram onde nunca sairão.
Lembranças de páginas que não disseram nada,
e de outras que disseram tudo,
não dizendo nada também.
Vontades; desejos; lembranças!
Nostálgico e incandescente passado,
que já passou;
presente desprezível e desprezado,
ausência de substância;
Futuro,
medo de sabê-lo,
desejo de adiá-lo.
Imensa vontade de inexistir;
preguiça de ser eu.

A rua que tantas vezes vejo,
as pessoas com as quais sou obrigado a conviver,
os pensamentos
- o moralismo cristão! -
que me forçam a escutar,
e as situações geradas
por esse encadeamento de elementos sinistros!

Compreender o que eu não compreendo
não depende da compreensão de ninguém.

[Sou uma sombra...]

Sou uma sombra, ou, antes,
um projeto dela,
que nem a sombra chego a ser.
Sou a fumaça das fábricas, dos escapes dos automóveis,
do cigarro que mulheres fumam.
Sou, talvez não a fumaça,
mas a dispersão dela,
pois a fumaça realmente dita não passa de metáfora em busca
de um conceito que não sei expressar.
Sim, sou a dispersão.
A agudez do som que ninguém ouviu,
O cinza do dia chuvoso em que ninguém saiu de casa.
Sou tudo o que é apenas por obrigação de o ser;
Sou tudo o que é e passa sem contemplação;
Sou tudo e a nebulosidade estática de ser tudo:
A ataraxia de um deus morto
e a revolta de um morto-vivo.