"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

domingo, 27 de março de 2011

Absconso ritual IV


Fotografia: Natan Henrique de Faria e Sales

Onde andará aquele garoto, aquele mesmo de olhos negros, meio lerdo, que me acompanhava nas discriminações da escola? Onde, onde andará? Onde estará Alexander? Até onde sei, pode estar numa cidade qualquer com os pais ou morando sozinho em Bucarest. Onde quer que esteja, é quase certo que não se lembra mais de mim.

Alexander era filho único. Emigrou da Romênia com os pais. Nunca lhe perguntei nada sobre Chausesco. Mas também, de que valia ter perguntado: com toda certeza ele não foi morto nem maltratado por ele! E, no fim, é sempre isso que importa, é sempre isso que procuramos conseguir: não ser morto. O resto (se gosta ou se não gosta, se é feliz ou não...), o resto é acessório, o resto é enfeite, o resto é o que não é importante.
Estive uma vez na casa de Alexander. Não ficamos em seu quarto jogando vídeo-game. Alexander não tinha quarto. Dormia na sala. Eu não tinha casa, dividia um apartamento com um monte de gente que entrava e saía: um dia dormia com alguém ocupando a cama ao lado da minha, no outro já não estava mais e era outra pessoa que chegava. Mais tarde também pude dormir na sala, mas isso foi mais tarde (depois de eu conseguir um vídeo-game).
Mas falava do Alexander, da vez que estive em sua casa. Antes de chegarmos, paramos num café, ele me pagou uma coca-cola. Ele me falava da Romênia, eu lhe falava do Brasil. Tenho certeza de que não acreditou em uma única palavra que lhe disse sobre o carnaval. Eu também não acreditei que Bucarest fosse linda. Saímos do café, seguimos pela rua da escola até a avenida, andamos por lugares que já não me lembro e chegamos à casa de Alexander. Pegamos a bola e fomos para uma praça.
Era uma praça grande, algumas crianças brincando, uns rapazes jogando bola. Nós ali, inventando um pretexto para nos aproximarmos, inventando um pretexto para nos sentirmos iguais, pois ambos intrusos ali. Quando cansamos, Alexander me pagou um suco (ele me pagava porque queria um suco para ele, como eu não tinha dinheiro para comprar o meu, e ele não queria que eu ficasse olhando, pagava para mim, mesmo eu recusando excessivamente).
Alexander então voltou para a sua casa, para a sua sala. Eu voltei para a pensão, com inveja da sala e do minúsculo apartamento dos pais de Alexander. Queria que minha família também estivesse habilitada assim. Cumprimentei-o normalmente nos dias seguintes, sem que o nosso passeio diminuísse a distância entre nós. Víamo-nos todos os dias, e, excetuando o sorriso sincero, era tudo indiferente.
Hoje, num canto qualquer do interior do Brasil, tapando os ouvidos para os sons de uma noite que para alguns é festa, sozinho no quarto, bate uma saudade danada do Alexander. Onde, onde estará Alexander?
Não sei. Mas hoje, hoje ele estará comigo.

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