"Teu ato mais sublime é colocar outro em sua frente." William Blake

terça-feira, 3 de maio de 2011

Abril despedaçado

O livro Abril despedaçado, de Ismail Kadaré, mostrou-se ainda melhor que a adaptação cinematográfica, a qual eu já gostara muito. A figura de Diana Vorps talvez marcará lugar em minha memória por algum tempo, não sei muito bem como, mas senti o seu olhar, um olhar líquido: navegável, mas sempre a ocultar muito mais coisas do que as que se revelam sobre a superfície. O título do livro desenha o abril vivo-morto de Gjorg, em que cada dia é um dos derradeiros pedaços de sua vida que se desprendem na esperança inútil por Diana. O que fez daquele abril despedaçado não foi em última instância o fim da bessa ou o medo do gjaks, mas o prazo dado pela morte para que voltasse a ver a vida (Diana). No fundo, um livro todo voltado para o Kanun e para a morte, tem como mote real os olhos de uma mulher, expressa, melhor dizendo, seu mote nos olhos de uma mulher. A excelência de Kadaré neste livro, o ponto máximo de sua construção poética, foi, para além da estória bastante interessante, a habilidade em fazer de uma personagem secundária (Diana) e de uma estória também secundária dentro da trama do romance (a viagem do casal Vorps) o ponto alto da universalidade da obra, pois é a perspectiva da morte (que de início finge ser o aspecto universal) que vai ao encontro de Diana e faz o romance assumir ares de tragédia. Podemos dizer que em Abril despedaçado a morte é um acessório, algo banal que só se eleva a estatuto trágico a partir do contato com a vida (ou a possibilidade dela), que reside em Diana. A vida que subiu aos Alpes, ao tomar contato com a morte, resignifica-a por ser a morte de Gjorg, e padece; à morte, por outro lado, é impossível qualquer transmutação, é inevitável e cobra da vida o sangue que esta lhe deve. Se não fosse Diana, a vida, portanto, a estória de Gjorg, nada teria de extraordinário. A vida dá sentido à morte, e o significado disso escapa aos cálculos sanguíneos do Kanun. Kadaré mostra que não ficamos indiferentes a um olhar.

Aplica-se a Abril despedaçado um trecho de uma carta de Kafka, endereçada a um tal Oskar Pollak: ‘Acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, por que o estamos lendo?’

Abril nos acorda para a vida e para a impossibilidade de vivê-la, por vezes, em função de eventos que nos escapam. Abril nos acorda, e faz ver tudo com olhos novos, com olhos vivos: olhos de Diana.

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